Entrevista a Tiago Pereira, realizador de ‘A Música Invisível’: “A música cigana portuguesa não é ouvida, nem documentada, nem mostrada em lado nenhum”

Entrevista a Tiago Pereira, realizador de 'A Música Invisível': "A música cigana portuguesa não é ouvida, nem documentada, nem mostrada em lado nenhum"
Cartaz do filme “A Música Invisível”, um filme de Tiago Pereira.

Tiago Pereira, realizador, documentarista, radialista e visualista, é também o criador da Associação “A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria. Através dos seus projetos culturais, revela-se defensor da memória coletiva e tradição oral em Portugal, sendo que a sua maior ambição é humanizar quem retrata.

Num país que continua a virar costas a certas expressões artísticas, seja por preconceito ou incompreensão, o filme “A Música Invisível” é um álbum de memórias, de emoções e de vivências da população cigana portuguesa. Foram três anos de coleção de vozes e de olhares para as integrar no panorama musical português. Houve resistência, desconfiança até, mas no final são as pessoas e a sua forma de sentir o centro das nossas atenções.

Dias antes da exibição do filme no Festival Política em Coimbra nos próximos dias 10 e 11 de fevereiro, Tiago Pereira explicou os seus processos de aproximação e registo destas vozes.

A Música Invisível traz-nos’ um vislumbre documental da música cigana em Portugal, como aconteceu o processo dos 3 anos de filmagens?

Acima de tudo gravo pessoas, mais do que música. A mim interessava-me perceber por que é que aquelas pessoas fazem aquela música. Uma música que vem do coração e está sempre mais perto da intenção afetiva. É uma música que vem de dentro e relaciona-se com o seu ensino.

A música cigana explica-nos que a música fora das comunidades – e que se aprende um com o outro – funciona. E funciona da mesma forma que a música cigana, sem escolas de música, sem esse lado mais comercial, aprendes com o próximo, com quem está a teu lado.

A minha primeira intenção é gravar pessoas que fazem música e perceber por que a fazem e o que lhes interessa nela.

Portanto, o processo de 3 anos de filmagens funciona, porque este é um filme de montagem, nunca foi feito para ser um documentário. É um projeto – A Música Cigana A Gostar Dela Própria – de reforço positivo a uma música que não é ouvida, nem documentada, nem mostrada em lado nenhum (apenas em certos nichos de gravações no YouTube). É ir à procura disso e dessas pessoas, identificá-las e dizer ‘elas estão aqui’ e gravar todo o vídeo como se fosse o vídeo da música portuguesa. Depois também se percebeu, depois do filme completo e montado, que esse não era uma boa forma para as pessoas ciganas porque têm uma visão do mundo que não é exatamente igual à nossa.

Tivemos de ganhar a confiança delas e entrar nas suas comunidades, entrar nas suas igrejas e ter pessoas que nos levassem a elas e conseguíssemos gravar o mais possível. 

Fomos ao Alentejo, a Lisboa, ao centro do país, ao Norte, à Beira Baixa, à Beira Alta e tentámos gravar a maior quantidade de música que encontrámos

A cultura tem um forte impacto na identidade pessoal e coletiva e isso será ainda mais verdade quando falamos de minorias. Qual foi o objetivo pretendido com este filme?

‘A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria’ é sempre humanista, é isso que nos interessa, fazer um reforço positivo. Dizer “esta pessoa está aqui, faz isto e é incrível! Olhem para ela, ela não tem de tocar bem, porque ela tem uma alma incrível” e é essa alma que queremos mostrar. É sempre isso que estamos à procura.

O objetivo do filme é esse mesmo [encontrar uma identidade pessoal e coletiva], é perceber que existe uma música que é portuguesa (a população cigana está em Portugal há 500 anos) e que essa música é feita por pessoas e essas pessoas não são consideradas. Basta ir aos bairros do Algarve ou do Alentejo para perceber que aquelas pessoas, a maior parte das vezes, vivem em condições miseráveis e completamente desumanas. Mas, ao mesmo tempo, têm toda aquela alma para fazer música, uma música que não aparece em lado nenhum. 

Os etnógrafos durante anos passavam ao lado dos acampamentos ciganos e não gravavam. Espanhóis vinham cá e gravavam música cigana portuguesa, mas os portugueses gravavam o cante alentejano ou uma senhora a trabalhar no campo e passavam ao lado de um acampamento a tocar, não iam gravar.

Música é música, feita por pessoas e nós temos de colocar o foco nas pessoas, gravar e saber o que têm para dizer e para dar ao mundo. Portanto, o projeto foi feito para sinalizar, dar voz e dizer “esta música existe, é portuguesa, oiçam-na!”

O documentário surge a seguir porque, como havia muitas coisas fragmentadas, era importante montar aquele documentário e dar uma outra volta. E essa volta foi fundamental para os ciganos, porque muitos, quando viam os nossos vídeos – feitos de forma acústica, com as pessoas a cantar e de câmara fixa – não tinham produção. A questão da produção era muito importante, porque querem dar o seu melhor. A música deve ser produzida, por isso havia quem era muito crítico com o projeto e diziam que era horrível, mas depois, quando viram o filme – com produção, som tratado, grading da cor – deram a mão à palmatória e disseram que era incrível. Escutaram-nos e entenderam-nos.

Há por vezes um sentimento protetor por parte de comunidades que são historicamente discriminadas e perseguidas, como foi a sua reação à proposta do Tiago?

Claro que são desconfiadas e têm sentimento protetor, porque são discriminadas e perseguidas há anos e obviamente são desconfiadas de qualquer pessoa que se aproxima. Outras vezes, acham que as pessoas querem aproveitar-se delas e ganhar dinheiro à sua custa, porque continuam a viver em condições sub-humanas.

Portanto, não foi fácil, mas à medida que as coisas iam acontecendo e os filmes saíam cá para fora, perceberam que isto tinha força (cheguei a colocar vídeos na RTP Memória) e isso acabou por ter uma importância crucial para que o projeto continuasse.

Quando se tem assistido à instrumentalização de minorias para gerar medo e pânico, agora ainda mais a nível político e por vezes colocando umas contra outras, que importância ganham estas vozes que podemos escutar n’A Música Invisível?

Não vejo a instrumentalização de minorias relativamente à música cigana. Volto a dizer, vi sempre pessoas, eu gravo pessoas. A mim não me interessa discutir a música, interessam-me os contextos. Interessam-me as razões pelas quais as pessoas fazem isso e por isso o foco estava sempre nelas. Por isso tens um cigano como o Beto a dizer “o cigano faz aquela música muito romântica”, mas eu queria fazer outras coisas, misturar o hip-hop e a música de dança.

É isso que nos interessa, saber as razões  por que as pessoas fazem isso. Sempre vi aquela música como portuguesa, eles faziam e misturavam e havia rappers e influências das igrejas evangelistas, das baptistas dos EUA, das igrejas espanholas e misturavam tudo e às vezes tinham flamenco, outras rumbas e tangos também influenciadas por música da Galiza ou mais espanhola ou mais portuguesa.

O que interessa é saber dessas misturas e saber qual era o seu papel, por que fazem aquilo, por que gostam daquilo. Isso é o que lhes interessa, dizerem a sua própria história e explicarem por que o fazem. É isso que é importante e me interessa.

Num discurso politizado podemos esquecer que o foco são as pessoas. Que somos todos pessoas reais. Procuro sempre as pessoas reais. E o que eu queria saber era por que é que estas pessoas reais e portuguesas fazem esta música em Portugal que também é portuguesa, que não se fala em lado nenhum, que ninguém mostra e que ninguém indica.


O filme de Tiago Pereira, “A Música Invisível”, vai ser exibido no Festival Política em Coimbra. Dia 11 de fevereiro, pelas 17h00 na sala D. Afonso Henriques, poderá ser visto o resultado de mais de 250 vídeos gravados com diferentes comunidades ciganas portuguesas. Além da exibição do filme coproduzido pelo Festival Política, há um concerto e conversa dedicada à música cigana no país.

Por Pedro Carreira

Ativista pelos Direitos Humanos na ILGA Portugal e na esQrever. Opinião expressa a título individual. Instagram/Twitter/TikTok/Mastodon: @pedrojdoc

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