Nos Grammys com Madonna, Sam Smith e os sintomas do culto da celebridade

Nos Grammys com Madonna, Sam Smith e os sintomas do culto da celebridade

Nos últimos dias, os debates e reações que se espalharam um pouco por todas as redes sociais e órgãos de comunicação social a respeito da aparência de Madonna nos Grammys dão que pensar. Opiniões e pontos de vista de parte, mostraram uma situação em que, mais uma vez, vê-se o que está por baixo do véu de purpurina que envolve as indústrias da música e os seus ‘fantásticos prémios’ – que não fazem mais do que ludibriar e comunicar ao mundo uma falsa diversidade e aceitação. Esta é a era da celebridade, que Madonna também alimentou e soube navegar, porém, é também o momento histórico em que a música é uma “performance visual”, na maioria das vezes mais do que som ou outra coisa qualquer. E sim, isso é um problema gravíssimo.

Um pouco de indicadores históricos colocam-nos na década de 1970. Estamos nos Estados Unidos, época de fundação de vários clubes e discotecas que com o desenvolver dos anos permitiram o surgimento de muitas pessoas que, através da sua arte – agora conhecida amplamente pelo rótulo de música eletrónica (de dança) –, defendiam um discurso: liberdade e diversidade para todos. Na pista de dança, imaginava-se uma espécie de espaço ficcional da ilusão em que todos eram iguais, não havia género, sexualidade, raça, classe (ou pelo menos assim o achavam). Com o boom das tecnologias eletrónicas e digitais, não foram apenas o estúdio de gravação e estas músicas que se transformaram, surgiu também uma outra forma de consumo musical: o vídeo. Com os seus primeiros passos no Reino Unido, e depois nos Estados Unidos com a Music Television (MTV) em 1981, abre-se espaço para outro tipo de músico. Agora a estrela já não é o músico de rock, é a estrela televisiva, principalmente a que canta e dança para uma audiência. Nasce uma versão moderna da cultura da celebridade na música.

Madonna é, em parte, uma das percursoras, mas mais do que isso diria que é uma das poucas resistentes. É que este ‘culto da imagem’ trouxe consigo um efeito perverso, pois a juventude não é eterna. Curiosamente, as estrelas de rock continuavam, e ainda continuam, a ser celebradas independentemente das suas rugas, opções cosméticas ou (in)capacidade de estar na moda. Neste género, e poderia dar outros exemplos, há uma ‘aura de autenticidade’ que é mais importante do que tudo o resto, cantar e tocar instrumentos é que os fãs continuam a valorizar ao longo dos anos. Só que, a espetacularização do músico, o gosto pela imagem, e a mercantilização das personas da pop também têm as suas regras. 

No estudo de Kristin LiebGender, Branding, and the Modern Music Industry: The Social Construction of Female Popular Music Stars, percebe-se que as mulheres da pop (e não são só elas, mas voltarei daqui a pouco a esta ideia) são marcas que vendem uma imagem, às vezes mais do que música. Um dos pontos-chave do seu livro é a existência de um ciclo de vida que dura apenas alguns anos, e a necessidade de alteração da sua imagem ao longo do tempo caso queiram manter-se ‘pertinentes’ no mercado. Das reinvenções mais comuns está o afastamento das cantoras do mundo da música, e a entrada em outros meios, é o caso do cinema ou a televisão, e Madonna, Britney Spears, Lady Gaga, assim muitas outras, são exemplos disso mesmo. 

Madonna é uma sobrevivente da pop e, ao mesmo tempo (perdoem-me se ofendo alguém), é um estudo de caso único. É das poucas artistas que começa o seu percurso na instauração deste ‘vício’ e que foi capaz de usar as ferramentas em seu proveito para alcançar resultados fascinantes. Agora, ‘fora de moda’, tornou-se um dos principais alvos de doença cultural que afeta a esfera das artes: a incompatibilidade com padrões de beleza hegemónicos. Está documentado que o idadismo é um problema que afeta mulheres e outras pessoas, não apenas no mundo da música, mas o facto de Madonna não se recusar a ‘abandonar o palco’ faz com que continue a ser uma força política de subversão.

Quero deixar bem claro que as consequências perversas do culto da imagem na performance musical atravessam outras identidades. Deixo apenas uma nota de reflexão, principalmente porque me deparei com ela no mesmo evento dos Grammys. É curioso que tenham surgido reações a respeito do guarda-roupa arrojado que marca uma identidade própria em Sam Smith. Isto porque Harry Styles, outro artista que também não é propriamente o exemplo mais normativo no que toca à moda, é valorizado por isso. Agora entra a lente intersecional (um beijo à maravilhosa Kimberlé Crenshaw que mudou para sempre a nossa forma de pensar) porque a discriminação e o privilégio são matérias complicadas. Será aleatório que, ao mesmo tempo que alguns dizem que Sam Smith é uma pessoa com ‘mau gosto’, dão também uma achega sobre o seu excesso de peso, ou para dizer que é ‘feia’? É que, magicamente, Harry Styles é magro, dizem que é bonito e, lá está, é homem…

O que quero dizer, e vou fazê-lo diretamente com todas as letras, é que com a ultra valorização que as indústrias da música fizeram ao culto da imagem abriram as portas ao idadismo e à gordofobia que afeta as vidas e profissões de mulheres e pessoas LGBTI+. Há vários fatores em jogo, é evidente e claro para todos que historicamente há uma pressão social para que as mulheres permaneçam bonitas, jovens e ‘normalizadas’ toda a vida, um peso que também afeta pessoas trans, homossexuais, e outras, ainda que de modos distintos. Há que ter cuidado com o que se exige das aparências, e o culto do belo na arte, pois são espadas de dois gumes.

2 comentários

  1. Então temos que aceitar as pessoas que se tornam feias ou so as que nascem feias ? Talento e Madona na mesma frase ? Ou foi so polemica e saber que botoes apertar que deram o suceaso a maioria das pessoas de “sucesso”,
    Um rosto bonito ajuda em toda profissao e ponto final, é da natureza humana.
    Existem coisas possiveis, extremamente dificeis porem possiveis.
    Mas mudar o conceito de belo é bem complicado.
    endeusar feiura fabricada junto ao cirugiao? Ou simplesmente dizer que obesidade nao é uma doenca? Anorexia doença! Obsidade nao!
    todo extremo é doença e mata.Experimenta tomar 8 litros de agua em 2 horas e me diz se faz bem!.
    A materia fala mais de quem a escreveu do que um novo dilema, isso sempre existiu e sempre existira, a gente muda o ambiente nao
    conceitos.

  2. Engraçado esse pensamento de que a culpa da violência que a Madonna sofre hoje em dia é, em parte, da própria Madonna. Acho ingênuo pensar por esse lado. A padronização da beleza é anterior à Madonna, é maior que ela. Ela apenas buscou formas de se beneficiar desse padrão, mas ao mesmo tempo foi criticada por outros pontos em que ela não se adaptava. E continua a mesma coisa hj em dia.

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