Afonso Reis Cabral e a nega de um homem cis

Imagem via Facebook do autor.

O escritor Afonso Reis Cabral partilhou como foi recusado por uma editora de ver dois dos seus livros traduzidos e editados no mercado estadunidense. Um deles, Pão de Açúcar, é um livro que aborda o assassinato de Gisberta, mulher trans, imigrante e brasileira, em 2006 na cidade do Porto.

A crítica de Pão de Açúcar foi na sua maioria boa, mas um/uma colega exprimiu preocupações quanto a uma pessoa cis escrever sobre uma pessoa trans — outro tema altamente sensível“, lê-se na resposta enviada pela editora.

Essa sensibilidade foca-se no facto de Afonso Reis Cabral ser um homem cis e a história abordar o assassinato de Gisberta por um grupo de 13 adolescentes. Trata-se, portanto, de uma pessoa real, não imaginada.

Tentei encontrar uma pessoa LGBTQ falante de Português para tentar escrever um relatório de sensibilidade, mas não encontrei ninguém que falasse português. Por essas razões, decidi passar”, termina a nota. Ou seja, na impossibilidade de encontrar alguém da comunidade que pudesse dar a sua impressão sobre o livro que retrata um evento desta natureza, o livro foi rejeitado pela editora. Uma decisão editorial que, imagino, afetará centenas de outras pessoas autoras, queer inclusive. Não é sabido se foi rejeitado por mais editoras, Afonso Reis Cabral apenas se focou nesta nega.

Tal deve-se por aquela que o autor considera ser uma cultura de “hipersensibilidade” no meio literário. A resposta recebida “demonstra preocupação em que um homem, que se identifica como homem, escreva sobre uma mulher trans, e que portanto não tem lugar de fala para o fazer“. Na realidade, não é isso que está em causa, uma vez que o livro de Cabral está editado e traduzido em várias línguas, tendo sido, inclusive, vencedor do Prémio Literário José Saramago em 2019.

Isto é a negação total da ficção e da literatura tal como ela é. É querer transformar a literatura no fundo num traduzir da experiência própria de vida, e isso não é aceitável. Literatura não é nada disso”, continuou. Este é um argumento que, pelo menos em teoria, poderá ser válido, Acontece que a história não está do lado de Cabral e temos décadas e décadas de histórias escritas por pessoas cis e hetero sobre pessoas LGBTI+. A figura não é bonita e foi – e ainda é – quase sempre estereotipada. Daí que as editoras e produtoras tenham nos últimos anos criado mecanismos para inverter essas tendências de predominância cultural, quer seja em termos de orientação sexual, identidade de género ou outra qualquer minoria. Na impossibilidade de o fazer, a editora rejeitou, sim, um homem cis.

É assim tão evidente que uma mulher trans pode escrever sobre um homem cis?

No entender do autor, “é evidente que uma mulher trans pode escrever sobre um homem que se identifica como um homem e vice-versa”. Acontece que, como também será evidente, esta regra não se aplica a Gisberta e, como tal, há contextos que importam ter em conta. Reforço, não estamos a falar de uma personagem ficcional, falamos de uma pessoa real, uma mulher trans que fugiu da violência do seu próprio país para a encontrar em Portugal e ver um país falhar por completo a sua segurança e, em última análise, a sua própria existência. E se Gisberta se tornou num dos maiores ícones tanto em Portugal como no Brasil na luta pelos direitos das pessoas trans, está longe de ser a única, muito longe.

É neste contexto, em que são violentadas e assassinadas milhares de pessoas trans no mundo, que um autor português considera “hipersensível” a negação de mais uma edição de um livro que escreveu sobre o assassinato de uma mulher trans. Como se a editora não tivesse ela própria o direito em se defender e tentar enquadrar a obra em causa no seu contexto social e cultural. Ao contrário do que diz Afonso Reis Cabral, isto não é “censura“, como afirmou Pedro Sobral, administrador executivo da editora LeYA e presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros. Logo para começar porque os seus livros continuam disponíveis no mercado estadunidense (em Português, Espanhol e Italiano). E depois porque, no fim de contas, foi apenas a nega de uma editora. Reforço, houve mais?

Essa alegada hipersensibilidade cultural pode muito bem ser entendida na realidade como uma hipossensibilidade de Afonso Reis Cabral quando está perante um assunto tão complexo como a importância da representatividade na cultura e o impacto que esta tem na forma como são contadas as histórias e, mais que isso, como são percecionadas por quem as lê. Esta foi a ponderação assumida por uma editora perante a obra de Cabral e, imagino, de outras pessoas autoras. Afinal de contas, e para terminar, pergunto: quantas mulheres trans podem, efetivamente, escrever sobre homens cis?

Por Pedro Carreira

Ativista pelos Direitos Humanos na ILGA Portugal e na esQrever. Opinião expressa a título individual. Instagram/Twitter/TikTok/Mastodon/Bluesky: @pedrojdoc

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