Crianças LGBTI+ importam

Fotografia por Joana Espírito Santo.

Tem sido uma constante nos últimos dias, em pleno Mês do Pride há quem diga que até pode ser tudo OK (que óbvio não lhes é, apenas dão a ilusão da benesse), mas deixemos as crianças em paz. Ora, a ideia do “deixem as crianças em paz” e que elas não sejam envolvidas no Pride não é nova. Pode até parecer – com falsidades recentes contra drag queens ou perturbações num evento infantil no Évora Pride – mas estas são ‘preocupações’ recicladas desde, pelo menos, a década de 1970.

A ideia de que os espaços de Orgulho não são apropriados a crianças e adolescentes têm vários pressupostos que procurarei desmontar. Entre outros:

  1. A orientação sexual e identidade de género podem ser mudadas/educadas/groomed (não podem, mas famílias podem criar espaços de inclusão em que as crianças e adolescentes podem explorar o seu mundo livremente e sem condicionantes ligadas, por exemplo, a papeis ou estereótipos de género. Note-se que me refiro ao condicionamento das famílias, não às ações e escolhas das crianças)
  2. A arte drag é exclusiva para pessoas adultas (se é verdade que muitos espetáculos de drag acontecem nas noites em bares – até porque historicamente foram para aí remetidos – a expressão da arte drag é imensa e não se limita aos pré-conceitos que algumas pessoas possam ter dela. Tal como outras formas de arte, há espetáculos para todo o tipo de públicos, todas as temáticas e estilos escolhidos pelas artistas)
  3. As próprias famílias estão alheadas do que pode vir a acontecer (há uma tentativa de afastamento entre crianças e suas responsáveis, como se as mesmas estivessem ao abandono e as colocassem ali em risco. As próprias famílias participam nestes eventos, geralmente com atividades de pinturas, histórias e jogos. O que pode vir a acontecer são umas horas bem passadas e em convívio com outras crianças)
  4. As famílias arco-íris não são reconhecidas (apesar de reconhecidas na lei em Portugal desde 2016, as famílias arco-íris portuguesas não são legitimadas por quem acha que as mesmas não devem frequentar espaços de Orgulho com as suas próprias crianças. As famílias arco-íris são um dos núcleos do movimento LGBTI+ e é apenas natural que participem)
  5. Não há crianças LGBTI+ (cada pessoa tem o seu tempo, mas uma parte considerável da população LGBTI+ descobriu-se, ainda que apenas para si inicialmente, em idades bastante jovens e ainda mais no que toca à identidade de género, havendo a partir dos 2 anos uma interiorização do género. Dar-lhes segurança e apoio é também um ato de humanidade e de amor)
  6. Não fomos antes crianças LGBTI+ (argumentos como aqueles quase fazem crer que não fomos – nós, pessoas adultas LGBTI+ – um dia crianças. E se as gerações mais velhas enfrentaram obstáculos especialmente difíceis como a criminalização da homossexualidade e a invisibilidade das identidades não normativas, felizmente, temos progredido nas últimas décadas para que todas as pessoas possam viver livres e em igualdade a sua identidade. Sim, desde crianças. Quem me dera ter tido na altura as ferramentas e a visibilidade que hoje temos, teria facilitado muito o meu processo de aceitação e de empoderamento pessoais. Remeter novamente para a invisibilidade, para a vergonha e para o armário é um ato de violência contra jovens LGBTI+ que não voltaremos a permitir. Sabemos bem o preço que pagámos por assim termos vivido)
  7. A empatia e a partilha de momentos com outras realidades não é possível (a criação de laços com outras pessoas, o reforço da empatia para com quem é diferente de nós, a partilha de momentos educativos, pedagógicos e divertidos ajudam à coesão social, ajudam a unir ao invés de desunir. Os eventos do Pride estão abertos a todas as pessoas que defendam os direitos humanos, basta ir a uma marcha ou arraial para entender a variedade de pessoas que junta a sua voz à luta)

Esta é talvez a lição maior que falta passar, a de que estamos aqui a falar de pessoas, de famílias, de deixarmos para trás conceitos bafientos de vergonha por sermos gays, lésbicas, bissexuais, trans, intersexo, queer ou de sermos pais e mães de crianças ou adolescentes que o sejam.

Sonhamos e trabalhamos na construção de um futuro em que a liberdade e a igualdade são vividas plenamente por toda a população. Importa, pois, perceber que tal mundo não é possível, precisamente, sem as crianças. Aquelas que fomos um dia agradecer-nos-ão.


Este tópico esteve em destaque num episódio especial do Podcast Dar Voz A esQrever:

Por Pedro Carreira

Ativista pelos Direitos Humanos na ILGA Portugal e na esQrever. Opinião expressa a título individual. Instagram/Twitter/TikTok/Mastodon/Bluesky: @pedrojdoc

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