O paradoxo da vitória de Marina Machete no concurso Miss Portugal

Foi uma das notícias da semana e das que despertou mais reações: Marina Machete é a primeira mulher transgénero a vencer o concurso Miss Portugal. No entanto, rapidamente as redes sociais e colunas de opinião de orgãos de comunicação social mostraram a divisão que esta vitória simboliza.

Vejamos, se, por um lado, temos a celebração da vitória de Marina Machete, uma assistente de bordo trans que assim fez história no concurso; por outro, temos a negação da sua identidade com discursos repletos de transfobia – sim, falo também de Joana Amaral Dias, a nossa TERF-mor portuguesa. Se a isto tudo juntarmos o contexto de um concurso que celebra os maiores e afunilados estereótipos do que é ser mulher, deparamo-nos diante de um tremendo paradoxo.

Importa reconhecer o Miss Portugal pela aposta na inclusão, pois, ainda que assim o tenha colocado nos holofotes nacionais, algo que não acontecia há muito num estilo de concurso que tem definhado nas últimas décadas, houve outros que impediram a participação de mulheres trans. A resposta a esta nega? Ter homens trans a concorrer à versão do concurso italiano, numa reviravolta genial ativista que colocou a descoberto a incoerência da proibição. Uma incoerência, registe-se, unicamente alimentada pelo preconceito e pela transfobia.

Não é por acaso que os concursos de Misses têm origem conservadora

Os concursos das misses há décadas que têm sido criticados pela objetificação da mulher e do seu corpo. Uma mulher padrão, quiçá uma mulher Barbie? Não é por acaso que estes concursos são especialmente celebrados e promovidos por agentes conservadores. Basta recordar que Donald Trump foi dono do Miss Universo durante duas décadas e até 2015, concurso que Marina Machete irá agora concorrer.

Por isso é fácil entender de onde surge tamanha resistência contra a vencedora: de um ambiente extremamente conservador. E se é verdade que tem havido modernização das regras do concurso e empoderamento das participantes, afinal de contas será sua a decisão de ali estarem, tudo ainda soa anacrónico.

O paradoxo Miss Portugal obriga-nos a uma escolha difícil e imperfeita

Temos aqui um caso perfeito de dois mundos que se tocam. Um conservador que procura modernizar a sua imagem através de uma bem-vinda inclusão, mas sem abandonar por completo a sua idealização da mulher (no singular); e um outro, emancipado e orgulhosamente feminista, que adora a reviravolta desta vitória segundo os moldes conservadores, mas enquanto ignora, de forma mais ou menos consciente, que a reviravolta foi-lhes dada pelos próprios moldes conservadores.

Afinal, para onde tendem os pratos desta balança? Que parte da equação tem mais peso aqui? O paradoxo Miss Portugal obriga-nos a uma escolha difícil e imperfeita. E talvez seja esse o ponto a retirar de todo este episódio. Que as nossas escolhas e decisões nem sempre são simples e as mesmas podem ser contraditórias com aquilo que defendemos. Por vezes é o melhor que conseguimos fazer, retirarmo-nos da equação final e acenar para o vazio, com ou sem coroa.

Neste discurso posso assim não congratular o concurso Miss Portugal, mas felicitar a vitória de Marina Machete. E faço-o sem hesitar na condenação de toda a transfobia a que está a ser sujeita. Porque, independentemente das razões que a levaram ali e dos estereótipos que possa estar a alimentar, a coroa, pelo menos hoje, pertence a uma mulher. Uma mulher trans. E isso pode ser que, de uma forma menos óbvia e por caminhos incertos que nos escapem hoje, possa fazer alguma diferença. Obrigado, Marina.

Por Pedro Carreira

Ativista pelos Direitos Humanos na ILGA Portugal e na esQrever. Opinião expressa a título individual. Instagram/Twitter/TikTok/Mastodon/Bluesky: @pedrojdoc

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