Podemos estar perto de uma cura para o VIH?

De acordo com o relatório de Infeção por VIH* em Portugal – 2023, durante as quatro décadas desta epidemia (1983-2022), foram registados em Portugal 66 061 casos de infeção por VIH, tendo 23 637 atingido estádio SIDA*. A partir de 2013 observou-se uma redução no número de novos casos tanto de infeção como de novos casos de SIDA. No entanto, apesar desta descida, Portugal continua a apresentar taxas de novos casos de infeção por VIH e SIDA significativamente superiores aos valores médios da União Europeia. Assim, a busca por uma cura para esta doença e o desenvolvimento de uma vacina são cada vez mais importantes de forma a erradicar esta epidemia quer a nível nacional quer mundial. 

​A razão pela qual o VIH é tão difícil de curar deve-se à presença de uma reserva viral latente, ou seja, durante o seu ciclo de vida, o vírus integra parte do seu material genético no DNA do hospedeiro*. Parte deste DNA não é transcrito (não produz proteínas virais, nem se replica de forma a gerar mais vírus) a não ser quando é ativado por diversos estímulos fisiológicos. Esta latência permite que algumas células infetadas pelo vírus escapem à deteção imunológica e eliminação, o que permite que o vírus reapareça quando se suspende a medicação. Assim, a reserva viral latente é a razão pela qual indivíduos com VIH necessitam de medicação crónica. 

De forma a erradicar algo é necessário primeiramente identificá-lo e defini-lo, o que no caso do VIH ainda se prova ser um desafio. Em particular, devido ao facto de diversos detalhes sobre a reserva viral serem desconhecidos. Como erradicar o vírus se provou ser um grande desafio, durante muito tempo vários cientistas defenderam que seria mais realista desenvolver uma “cura funcional”. Assim, tentaram recriar o fenómeno que ocorre em diversos doentes que, sem serem sujeitos a terapia antirretroviral*, mantêm ao longo de muitos anos contagens normais de CD4 T*, apesar de terem taxas de replicação viral médias ou elevadas. Isto pode ser recriado quando se faz com que o vírus naturalmente atinja homeostase* com o hospedeiro. Tal pode acontecer devido a uma alteração na suscetibilidade do hospedeiro para infeções ou melhorando o controlo imunológico da replicação viral. No entanto, foi estudado que algumas destas pessoas que conseguem controlar a doença acabam por deixar de o conseguir fazer, tendo que ser tratados com terapias antirretrovirais na mesma e mesmo nos casos em que tal não acontece, estes indivíduos sofrem na mesma as complicações de inflamações crónicas. Assim, conclui-se que uma “cura funcional” não é a solução sendo a erradicação do vírus o caminho a seguir.  

​Já existem diversas estratégias que estão a ser desenvolvidas no momento para encontrar uma cura para o VIH:

“Supressão e Proteção”

Esta técnica está a ser desenvolvida com base nos famosos casos de indivíduos que foram curados após transplantes. Tanto o “paciente de Berlim” como o “paciente de Londres” foram sujeitos a transplantes de medula óssea cujo dador tinha uma mutação no gene CCR5. Uma vez que o CCR5 é um recetor necessário para a maioria das estirpes de VIH, o sistema imunitário reconstruído destes pacientes era naturalmente resistente à infeção por VIH. Estes casos levantam a hipótese de se poder curar o VIH utilizando modificações genéticas que suprimam a habilidade do vírus de se replicar ou melhorar a atividade antiviral do sistema imunitário. 

Estudos recentes em ratos que tinham como alvo utilizar técnicas de edição genética no DNA proviral* do VIH resultaram numa redução de vírus capazes de replicação sem efeitos indesejados. Esta mesma técnica foi utilizada num macaco (“Miami Monkey”) para distribuir anticorpos contra o VIH resultando na remissão do VIH duradoura neste animal. Estes casos mostram-nos que pode ser possível utilizar técnicas de edição genética para desenvolver ferramentas para a cura do VIH. Assim, no futuro pode existir uma cura apenas com algumas injeções. Uma primeira injeção contendo uma terapia antirretroviral de ação longa (supressão da replicação viral) e uma segunda injeção com modificações genéticas (proteção permanente do sistema imunitário).

​Qualquer método tem as suas desvantagens, sendo que este método pode depender de transplantes de medula óssea que é um procedimento arriscado. Caso se opte pela via de edição genética também se tem que considerar os riscos que a mudança de função dos genes humanos pode acarretar, especialmente se tal não for possível realizar com grande precisão. Também é preciso considerar a eficácia dos sistemas de modificação génica. A modificação do gene CCR5 em particular pode trazer algumas complicações extra. Os indivíduos com a mutação que faz com que não o tenham costumam ter outros genes com expressões fora do vulgar para compensar, assim modificar este gene em indivíduos sem essa habilidade pode ser prejudicial. Também existe o problema de ainda não termos técnicas muito avançadas que permitam a edição de genes in vivo*.     

“Choque e Morte”

Esta técnica tem por base tentar remover a reserva viral latente explicada acima. Esta latência é mantida, em parte, por uma enzima chamada HDAC. Assim, utilizar um inibidor desta enzima pode reverter a latência. Ao remover esta latência, vai haver síntese de RNA viral, produção de proteínas virais e libertação de partículas de VIH que poderão levar à morte das células infetadas e eliminação da reserva viral pelo sistema imunitário. Os ensaios clínicos realizados utilizaram um inibidor da HDAC chamado vorinostat que é utilizado no tratamento de certos cancros.

​No entanto, estes ensaios deixaram muitas perguntas por responder, sendo necessário desenvolver muito mais esta técnica antes de poder ser considerada para o tratamento do VIH. Por exemplo, nem todos os indivíduos do estudo reagiram ao vorinostat (tendo estes sido excluídos do ensaio). De forma a determinar quem ficaria no estudo e quem seria excluído foi necessário realizar testes complexos que acarretam altos custo económicos e que não são viáveis para uma cura global. Para além disso, este método assume que o vírus ou o sistema imunológico do hospedeiro irá destruir as células infetadas, mas dados recentes sugerem que tal poderá não ser verdade. 

“Estratégias de reforço imunológico”

Os dados mais recentes mostram que indivíduos com VIH têm uma resposta imunológica grande ao vírus, contudo esta resposta não é capaz de controlar a replicação viral ou matar a maioria das células afetadas. Há múltiplas razões para isto acontecer, sendo uma delas uma expressão incorreta de recetores imunes inibitórios. Assim, o uso de inibidores destes recetores aumenta a qualidade da resposta das células T anti-VIH, podendo reduzir significativamente a carga viral.  

“Bloquear e Trancar”

Esta técnica é relativamente recente e baseia-se no facto de a transcrição do VIH poder ser significativamente reduzida utilizando inibidores. A transcrição do VIH e a sua latência funcionam através de interações complexas entre células e proteínas virais. Assim, pode-se utilizar diferentes inibidores para silenciar a transcrição do VIH. Um exemplo de um destes inibidores é o dCA que inibe a Tat que é a primeira proteína viral a ser expressa após a infeção. Bloquear esta proteína bloqueia a transcrição do VIH. Estudos realizados em ratos mostram que o seu tratamento com dCA e a sua posterior suspensão levou a um atraso e redução da recuperação viral. 

​Uma das vantagens deste método é que, quanto mais a ciência avança, mais alvos será possível inibir, aumentando assim as possibilidades de ser uma cura que funcione globalmente. Para além disso, esta técnica tem como alvo a transcrição do VIH de uma forma global, o que sugere que vai afetar não só a carga viral que é capaz de se reproduzir, como também a reserva viral latente. Como esta técnica não erradica completamente o vírus, apenas mantendo-o inativo dentro do organismo, é provável que esta estratégia seja mais fácil de realizar do que qualquer outra estratégia que tenha como objetivo a erradicação total do vírus. Todas as estratégias desenvolvidas para esta técnica têm por base pequenas moléculas ou componentes que já existem, o que a torna muito apelativa, uma vez que pode ser administrada em regime ambulatório com custos relativamente baixos. 

​Contudo, esta técnica tem as suas limitações. Primeiro, a ausência de estudos clínicos que impedem que se comprove se esta pode realmente ser utilizada em humanos. Para além disso, nenhum dos estudos realizados conseguiu uma supressão viral completa e a longo prazo. No entanto, só o atraso que esta técnica gera pode já reduzir os custos de medicamentos e deslocações a clínicas e hospitais.

​No entanto, tem que se ter em atenção que a cura tem que ser menos tóxica que terapia antirretroviral crónica e tem que ser generalizada. Ou seja, não pode ser um procedimento, terapia ou medicamento que esteja apenas disponível em certas instituições especializadas ou que não possa ser aplicada em larga escala, quer a nível de produção como de distribuição. Assim, conclui-se que o desenvolvimento de uma cura para o VIH não é suficiente para erradicar esta epidemia caso não se aposte em ações de prevenção do contágio, não se aumente o número de diagnósticos e não possa ser aplicada a uma escala global, particularmente nos países em desenvolvimento.

*Glossário

  • VIH: Vírus da imunodeficiência humana que pode causar a SIDA e é responsável por atacar e destruir o sistema imunitário.
  • SIDA: Síndrome de imunodeficiência adquirida. Pode surgir após a infeção por VIH e compromete o sistema imunitário, fazendo com que até uma simples infeção possa ser fatal. 
  • Hospedeiro: Célula ou organismo que é infetado pelo vírus. 
  • Terapia antirretroviral: Toma de medicamentos que impedem a multiplicação do vírus, reduzindo a carga viral no organismo. 
  • CD4 T: Tipo de leucócitos que auxiliam na defesa do organismo contra infeções direcionando outras células que neutralizam os agentes exógenos para o local correto. Sem estas células, o sistema imunitário não consegue reconhecer e coordenar respostas defensivas a doenças. 
  • DNA proviral: DNA que vírus que está incorporado no DNA dos cromossomas da célula hospedeira.
  • In vivo: Tudo o que ocorre dentro de um organismo ou tecido vivo. 
  • Homeostase: Processo de regulação pelo qual um organismo consegue manter um equilíbrio constante.

Bibliografia

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