
“A Série Fonseca” (2004), dos Gato Fedorento, marcou o compasso do humor para a minha geração preenchendo a saudade que o Herman José e as suas icónicas personagens haviam deixado.
O Tony Silva, o grande criador de toda a música ró; o Serafim Saudade, o verdadeiro artista; o Estebes, fã de bola e pomada. Até hoje despeço-me das amigas com Goodbye Maria Ivone. Sempre que dou um pontapé na gramática ou digo uma cacofonia lá me sai a língua portuguesa é muito traiçoeira. E, tal como a Maximiana, quando me sinto bonita solto um ó p’ra mim toda lampeira!
A genialidade dos Gato Fedorento colmatou a ressaca que a minha geração estava a sentir, sedenta por programas de humor que trouxessem irreverência e sátira abordadas com inteligência. Também Ricardo Araújo Pereira, José Diogo Quintela, Miguel Góis e Tiago Dores nos deixaram sketches que vão ficar marcados na linguagem de gerações. Falam, falam, falam, falam e não os vejo a fazer nada… Fico chateado!
Tiago Dores, Alberto Gonçalves e as gajas do bloco
Os Gato Fedorento completariam duas décadas este ano, mas há muitos que apenas três dos quatro elementos trabalham juntos. Tiago Dores não tem feito parte da equipa dos últimos programas que Ricardo Araújo Pereira tem apresentado e eu tinha perdido o rasto aos projetos atuais do humorista. “Encontrei-o” na semana passada no Twitter/X, num vídeo que se tornou viral. Nesse trecho, disponível no seu canal de YouTube “A lengalenga do Costume”, Alberto Gonçalves, partner in crime de Tiago Dores, afirma “o timbre do Francisco Louçã, a cadência de voz que influenciou estas… Pronto, eles não gostam que se diga, mas… Estas meninas, estas senhoras do Bloco, as líderes, as sucessoras de Louçã…” Tiago Dores interrompe: “gajas, diz gajas”. E continua: “é em honra do Dia da Mulher que foi ainda há tão pouco tempo, fica gajas”.
Fico indecisa se Tiago Dores está a tentar usurpar o lugar de Maria Vieira como comentador nas redes sociais ou de Nelo, a personagem de Herman José que achava que sabia tudo quando, na verdade, era a sua esposa Idália a intelectual de serviço. É que, Tiago Dores, afinal, parte do bordão do Nelo já começou a usar: resmas de gajas atrás de mim…
Não passaram ainda duas semanas desde a celebração do Dia da Mulher e da eleição de 50 deputados da extrema-direita para a Assembleia da República, um retrocesso na democracia, nos direitos das mulheres e da comunidade LGBTQIA+. Urge celebrarmo-nos umas às outras.
She-Ra viria a habitar o meu imaginário durante décadas como uma mulher poderosa
Quando era criança, mal podia esperar para me tornar adulta. Ansiava tornar-me uma espécie de Joaninha, do “Duarte e Companhia” (1985-1989), que batia desalmadamente em todos os homens que ousassem fazer-lhe frente. Ou uma versão humana da She-Ra – a Princesa do Poder (1986-1987), hipersexualizada, é certo, mas a verdade é que foi a primeira referência feminina nos desenhos animados a tornar-se um ícone para as meninas que ansiavam por, finalmente, glorificar uma personagem que as representasse. Apesar de afirmarem que uma mulher não sabia lutar e, muito menos, empunhar uma espada, She-Ra viveu nos ecrãs dois anos apenas, mas viria a habitar o meu imaginário durante décadas como uma mulher poderosa que não precisa de ninguém para tomar conta de si mesma, um desenho animado que aprendeu treino militar para ajudar a construir uma civilização mais desenvolvida e justa, libertando o povo oprimido e escravizado.
Eram os anos 80, a minha mãe era o que, na altura, se chamava “doméstica”, tal como as minhas avós e tias. Truques para tirar nódoas e deixar o chão a reluzir eram os únicos ensinamentos que as mulheres da família tinham para me oferecer. Perdi a conta aos puxões de orelhas (eufemismo) e às ameaças físicas e verbais para me convencer a descer ao planeta Terra, guardar os livros, desligar a televisão e aprender, de uma vez por todas, a fazer tarefas domésticas. Mas o tédio e a injustiça de ver o meu irmão a jogar à bola enquanto eu aspirava, lavava a loiça e limpava o pó davam asas à minha imaginação. Da vassoura eu fazia espada, do aspirador inimigo mortal e das colheres de pau microfones para gritar ao mundo as suas injustiças.
A família dizia-me recato, virgindade, delicadeza, doçura, ballet, tarefas domésticas e eu respondia “só se eu quiser”.
Decidi estudar Jornalismo. Seria com letras que eu iria mudar o mundo, já que, depois de experimentar Karaté e Kickboxing, rapidamente percebi que o meu contributo para uma sociedade mais justa e equitativa não passaria pela intimidação física.
Já na faculdade, no mesmo ano, surge o Bloco de Esquerda e uma gravidez não planeada. Apesar de ser apenas uma criança com 19 anos, priorizei o que tinha que ser priorizado: tornar-me a melhor mãe que eu conseguisse. Foi muito claro, desde logo, que essa minha maternidade exemplar, era muito mais do que trocar fraldas, alimentar, dar banho, adormecer e contar histórias. Era educar-me constantemente, não ficar para trás, não me tornar numa velha do Restelo em que no meu tempo é que era bom. A minha maternidade exigia ler histórias sobre outras culturas, estudar sobre outras sexualidades, outras etnias, outras religiões, estar atenta, ouvir, ouvir, ouvir. Só me educando eu conseguiria educar a minha filha.
Mariana Mortágua, Marisa Matias e Catarina Martins são uma espécie de Rosalía, Beyoncé e Billie Eilish
No ano da minha gravidez nasceu o Bloco de Esquerda. E a forma como eu tinha preconizado a minha maternidade encaixava na perfeição nos discursos de Francisco Louçã e Miguel Portas. Mas, feminista mesmo quando ainda nem conhecia a palavra, feminista mesmo quando engulo sapos gordos e de gravata, a felicidade suprema é viver num tempo em que três mulheres agregam esforços, incentivam os meros mortais a lutarem e mostram que existe um caminho na resistência. Mulheres que sabem que a força não está somente em si próprias, mas no coletivo e, por isso, não agem sozinhas, como é apanágio dos homens.
Se o Francisco Louçã e o Miguel Portas foram, para mim, autênticas pop-stars, a Mariana Mortágua, a Marisa Matias e a Catarina Martins são uma espécie de Rosalía, Beyoncé e Billie Eilish. Não há na música, no cinema ou na televisão, em Portugal ou no estrangeiro, pessoas com quem eu quisesse mais tomar um chá e comer um bolo de cenoura do que com Mariana, Marisa e Catarina.
A competição entre mulheres é fomentada há séculos e muitos, talvez o nosso Nelo de plantão, não acredite na profunda pureza das minhas palavras: é mesmo vaidade que sinto quando Tiagos Dores desta vida as tentam rebaixar por serem mulheres e, mesmo com este ruído tão desnecessário à volta, as três continuem focadas nas metas que delinearam, a denunciar os donos disto tudo, a trabalhar naquilo que acreditam. Mas sei que embora sejam mulheres (e todas somos super de uma forma ou outra), também são só seres humanos, com fragilidades e cansaços. E era tão melhor se os machistas e misóginos que se escondem atrás de era só uma piada se calassem de uma vez por todas…
Não sendo a vida um episódio de “Duarte e Companhia” e não tendo eu talento para ser a Joaninha e intimidar os vilões com promessas de pancada, forçando-os a deixarem-se de piadas (cujo significado no dicionário, já agora, é: dito que tem a intenção de fazer rir; anedota) escrevo-vos esta carta aberta de admiração. Imagino que, muitas vezes, haja vontade de desistir deste escrutínio diário e sujo, mas, apesar disso, escolhem todos os dias a luta. Por outras mulheres. Por mim. Pela minha filha.
Ser mulher na política, principalmente no futuro próximo, será uma luta diária de wrestling na lama, seja ela de que partido for
P.S: Esta carta aberta de admiração é dirigida à Mariana Mortágua, à Marisa Matias e à Catarina Martins porque são mulheres com as quais me identifico politicamente. Mas sugiro que coloquemos partidos à parte. Ser mulher, nós sabemos, é só por si uma tarefa árdua. Ser mulher na política, principalmente no futuro próximo, será uma luta diária de wrestling na lama, seja ela de que partido for.
Assim, deixo a sugestão romântica, dirão alguns, de enviarmos uma mensagem de solidariedade a uma deputada do partido que votámos nestas Eleições Legislativas. Pode ser que, entre um dia de desesperança, cansaço ou descrença, pelo menos, as façamos sentir que estamos atentas umas às outras.
- Maria M.

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