
“Um Caroço de Abacate” é uma curta-metragem realizada por Ary Zara, que se tornou num marco do cinema queer português. Com um elenco de destaque, incluindo Gaya de Medeiros e Ivo Canelas, o filme celebra a ligação e a aceitação entre duas pessoas, Larissa, uma mulher trans, e Cláudio, um homem cis, num ambiente mágico nas ruas de Lisboa. Em contraste com as narrativas habituais de violência e exclusão, esta curta-metragem oferece uma visão esperançosa e sensível sobre identidade e amor.
Tendo estado na corrida aos Óscares, o filme vai estrear nas salas de cinema portuguesas no dia 3 de outubro, inserido numa sessão tripla intitulada “Que Mulheres Serão Estas?“, que inclui também as curtas “By Flávio“, de Pedro Cabeleira, e “As Sacrificadas“, de Aurélie Oliveira Pernet. Estão previstas várias sessões especiais, com a presença das pessoas realizadoras e respetivos elencos (ver listagem abaixo).
Tendo estudado Cinema na Universidade Lusófona e na Universidade do Texas, em Austin, o realizador já arrecadou vários prémios em festivais de cinema internacionais com “Um Caroço de Abacate” e está atualmente a trabalhar na sua primeira longa-metragem. É esta a desculpa perfeita para abrir a conversa ao realizador Ary Zara e melhor compreender o contexto em que surge o filme e as suas motivações na construção das personagens Larissa e Cláudio.
“Um Caroço de Abacate” foge à narrativa, ainda demasiado comum, de violência em histórias trans e celebra a ligação entre duas pessoas. Como surgiu essa ideia?
Não sei se posso dizer que a fuga à narrativa da violência em torno de identidades trans tenha surgido como ideia para escrever esta curta. Acho que parte de um desejo de ver este tipo de narrativas e também de um lugar de falta. Não existem muitas narrativas que vão neste sentido, mas não a criei na tentativa de fuga, ou seja, creio na tentativa de encontrar este lugar onde nós, pessoas trans, podemos existir de forma tranquila, com perspectivas de um futuro feliz, de desejo, visões de empoderamento, de auto-cuidado.
A ligação entre duas pessoas surge também do meu universo, sou muito romântico e achei que podia ser interessante usarmos este arquétipo de um homem cis e colocá-lo num sítio também de grande vulnerabilidade e fragilidade, tentando não o julgar, criando espaço para que ele também possa existir dentro das regras que defini previamente. E as regras são simples: É um filme conduzido por uma mulher trans e é um filme onde ela vai estar sempre segura do início ao fim.
A escolha de Gaya de Medeiros para o papel de Larissa foi fundamental. Como foi o processo de casting e a importância de ter uma atriz trans a representar esta personagem?
Não aconteceu propriamente um processo de casting, eu tinha “Um Caroço de Abacate” já escrito no momento em que conheci a Gaya. Eu estava a trabalhar na discoteca Trumps como light jockey e videógrafo e a Gaya estava lá a trabalhar de forma esporádica como drag queen. E quando a conheci percebi que ela seria a pessoa certa para fazer este papel. Comecei então a adaptar o guião para ficar melhor na voz da Gaya, partilhei o guião com ela, ela gostou muito e decidimos começar a trabalhar juntes.

A escolha do Ivo prende-se com o seu talento enorme, a sua vasta experiência na atuação e senti que ele podia ser também uma pessoa que me podia guiar e fazer uma boa ponte com a Gaya, porque esta seria a primeira curta que eu iria dirigir e a primeira curta que a Gaya iria protagonizar e pareceu-me importante trabalhar com alguém com experiência. E à experiência aliou-se o talento brutal do Ivo, a sua generosidade e a sua entrega. Foram, sem dúvida, duas pessoas que contribuíram imenso para o filme, ou seja, “Um Caroço de Abacate” só é o filme que é porque tem uma Gaya de Medeiros e um Ivo Canelas. Até acredito que podia ser outro diretor, mas o elenco leva o filme do início ao fim.
O filme tem sido reconhecido internacionalmente, inclusive na corrida aos Óscares. Como encaras esse reconhecimento, que impacto esperas que o filme tenha na representação de pessoas trans no cinema e em futuros diálogos sobre identidade e aceitação?
Não são só as pessoas LGBTQI+ que tiveram interesse em “Um Caroço de Abacate”, senão ele não teria chegado a um ambiente tão mainstream e tão grande como os Óscares. Creio que isto acontece porque esta curta surge de uma forma muito experimental. Sinto-me ainda a fazer um exercício de comunicação com o público, de trabalhar de códigos e sinto que este filme, embora tenha como protagonista uma travesti, o filme não anda propriamente à volta das questões dela com a sua identidade. Obviamente que a Larissa nunca, jamais se esquece que é uma travesti, nem o Cláudio se esquece disso, mas creio que ele e ela encontram uma forma muito gentil de se relacionarem, se entregarem a esta experiência de uma noite e a esta possibilidade de se conhecer alguém.
Por isso, espero que filmes como “Um Caroço de Abacate” possam ajudar a esta criação de novas narrativas, principalmente relacionadas com pessoas trans. Narrativas que sejam mais amplas e que permitam que pessoas trans falem de outros assuntos que extrapolam a sua identidade, embora a tenha sempre como base, porque é a forma como olhamos o mundo.
Creio também que, possivelmente, nós vermos outros tipos de narrativas serem contadas poderá ser-nos mais fácil acreditar também nestas possibilidades no nosso dia-a-dia, porque, se estamos constantemente a assistir a previsões pessimistas do nosso futuro, pode ser difícil vislumbrarmos algo melhor. Gostava que, de alguma forma, filmes assim também pudessem instaurar esta possibilidade.
“Um Caroço de Abacate” estreia nas salas de cinema portuguesas no dia 3 de outubro e contará com várias sessões especiais e a presença das pessoas realizadoras e respetivos elencos.
Sessões especiais “Que Mulheres Serão Estas?”
3 de outubro, Lisboa, Cinema Ideal, 19:00
com presença de Ary Zara,Aurélie Oliveira Pernet, Pedro Cabeleira, Ana Vilaça, Tânia Alves, Valérie Braddell, Tiago Seixas Costa, Francisco Nascimento
4 de outubro, Lisboa, Cinema City Alvalade, 21:00
com presença de Aurélie Oliveira Pernet, Pedro Cabeleira, Ary Zara, Gaya de Medeiros, Ana Vilaça, Tiago Seixas Costa, Francisco Nascimento e Pedro Fernandes Duarte
5 de outubro, Coimbra, Casa do Cinema de Coimbra, 18:45
com presença de Aurélie Oliveira Pernet, Francisco Nascimento, Tiago Seixas Costa e Pedro Fernandes Duarte
5 de outubro, Lisboa, Cinema Ideal, 19:00
com presença de Ary Zara, Sara Marques, Ana Vilaça e Tânia Alves
6 de outubro, Lisboa, Cinema Fernando Lopes, 15:00
com presença de Ary Zara, Pedro Cabeleira, Ana Vilaça e Valérie Braddell

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