A História da Caça às Bruxas: Mulheres Independentes, Queer e o Patriarcado

A História da Caça às Bruxas: Mulheres Independentes, Queer e o Patriarcado.

Pormenor do quadro El Aquelarre (1798) de Francisco de Goya.
Grupo de bruxas veneram Satanás em forma de bode. Pormenor do quadro El Aquelarre (1798) de Francisco de Goya.

Ao longo da história, a figura da bruxa tem sido associada a mulheres que desafiam as normas sociais e patriarcais, especialmente em períodos de transição cultural e política. Muitas dessas mulheres foram rotuladas como “bruxas” pela sua independência, conhecimento tradicional, ou sexualidade dissidente, incluindo identidades queer. A caça às bruxas foi uma ferramenta de controlo social usada para suprimir aquelas que representavam uma ameaça ao poder masculino. Esta perseguição, que se verificou na Europa e nas Américas colonizadas, foi uma forma de opressão patriarcal com paralelos na construção moral de vilãs queer na cultura contemporânea.

Caça às Bruxas: Controlo Patriarcal

A caça às bruxas na Europa dos séculos XVI e XVII não foi apenas um fenómeno de superstição, mas um movimento profundamente enraizado no controlo social e patriarcal. As mulheres que foram rotuladas como bruxas geralmente possuíam características que as afastavam do ideal feminino submisso. Elas eram curandeiras, parteiras, viúvas, ou simplesmente mulheres que exerciam uma forma de independência que desafiava o status quo.

Essas mulheres também eram vistas como uma ameaça à ordem religiosa e política estabelecida. Muitas delas detinham conhecimentos sobre ervas e medicina tradicional, o que era visto com suspeita e, muitas vezes, como uma forma de feitiçaria. As autoridades, tanto religiosas quanto civis, utilizavam as acusações de bruxaria para justificar a tortura e o assassinato dessas mulheres.

Mulheres Queer e a Dissidência Sexual

Um aspecto frequentemente negligenciado da caça às bruxas foi o foco em mulheres que não apenas desafiavam as normas de género, mas também as normas de sexualidade. Mulheres que viviam fora de relacionamentos heterossexuais, ou que não se conformavam às expectativas de casamento e maternidade, eram muitas vezes vistas com desconfiança. As normas patriarcais não tinham espaço para expressões de identidade queer, e as acusações de bruxaria forneciam uma justificação conveniente para eliminar essas mulheres da sociedade.

Performance de Bambie Thug, artista não-binárie, na Eurovisão 2024.

A “bruxa” tornou-se um símbolo poderoso para mulheres queer e feministas, uma representação da resistência contra as normas patriarcais e heteronormativas. O facto de que tantas das mulheres perseguidas eram, na realidade, simplesmente diferentes em termos de orientação sexual ou estilo de vida, reforça a ideia de que a caça às bruxas foi uma forma de controlar dissidências que ameaçavam a ordem social dominante.

A Perseguição Moral de Pessoas Queer na Cultura

A perseguição moral de pessoas queer não se limitou à caça às bruxas histórica. Ao longo dos séculos, identidades queer continuaram a ser demonizadas na cultura ocidental. Um paralelo interessante pode ser traçado entre a figura da “bruxa” e a maneira como vilãs queer são construídas na cultura contemporânea.

Desde a literatura até o cinema, personagens queer são frequentemente retratadas como vilãs, vilões ou figuras moralmente desviantes. Estas personagens são muitas vezes retratadas como manipuladoras, traiçoeiras e sexualmente “perigosas”. Desta forma, espelham a mesma desconfiança e medo que cercava as mulheres acusadas de bruxaria. Um exemplo claro são personagens como Norman Bates em Psycho (1960), Úrsula da Pequena Sereia ou o vilão queer Jafar de Aladdin (1992), representadas com traços desviantes na sua sexualidade e comportamento, foram codificadas como figuras de ameaça moral à sociedade.

Essa construção de vilões queer reflete uma contínua demonização da dissidência sexual e de género. Assim como as mulheres independentes e queer foram rotuladas como bruxas para justificar a sua perseguição, personagens queer na cultura contemporânea são rotuladas como vilãs. Servem assim para reforçar a narrativa de que qualquer desvio da norma é perigoso ou imoral.

Opressão e Resistência

A história da caça às bruxas e a construção de vilãs queer na cultura contemporânea estão intrinsecamente ligadas a uma narrativa de opressão e controlo social. Tanto na Europa dos séculos XVI e XVII como no cinema e na literatura modernos, quem desafia as normas estabelecidas é frequentemente retratada como ameaças à ordem social. Isso revela um padrão contínuo de opressão que utiliza a marginalização de identidades dissidentes como meio de manutenção do poder patriarcal e heteronormativo.

Entretanto, tanto as bruxas do passado quanto as vilãs queer da cultura moderna foram reinterpretadas por movimentos feministas e LGBTQ+ como símbolos de resistência. A figura da bruxa foi reivindicada como um ícone de poder feminino, e as personagens queer vilãs tornaram-se, em alguns casos, símbolos subversivos de liberdade e autoexpressão.

A perseguição histórica das bruxas e a vilanização de pessoas queer compartilham raízes profundas no controlo patriarcal e na tentativa de suprimir a dissidência. Mulheres independentes, queer e não conformistas foram demonizadas e perseguidas ao longo dos séculos. Esta perseguição levou-as a julgamentos de bruxaria na cultura moral contemporânea. Ao mesmo tempo, essas figuras foram, e continuam a ser, reapropriadas como ícones de resistência contra as normas opressivas de género e sexualidade.

Em última análise, a história das bruxas e dos vilões queer revela a persistência de sistemas de poder que marginalizam quem desafia as normas, mas também a capacidade dessas figuras em simbolizar resistência, subversão e colocar em causa o status quo.



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Uma resposta a “A História da Caça às Bruxas: Mulheres Independentes, Queer e o Patriarcado”

  1. […] e judicial criminaliza-te, tenta amedrontar-te, silenciar-te, usar-te como exemplo público — tal como a queima de bruxas. Vivi esse percurso completo, desde as minhas primeiras ações político-artísticas. Nessas […]

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