São só Variações ou há sentimentos errados na música para cinema?

São só Variações ou há sentimentos errados na música para cinema?

Em 2019, o realizador João Maia trouxe ao público Variações, um filme inspirado nos últimos anos da carreira de António Variações, o “icónico” cantor português. Esta obra cinematográfica não é só uma biografia; é uma reinterpretação artística do ambiente cultural dos anos 80 em Portugal, com uma abordagem que, em muitos sentidos, assemelha-se à prática das atuações historicamente informada. Nos estudos em música, o termo refere-se a práticas com o objetivo de recriar a atividade musical o mais próxima possível do que seria no período em que foi composta. Assim, embora Variações não seja um documentário, João Maia utilizou informações detalhadas da vida do cantor, entrevistas e documentos da época para dar vida à sua visão.

Um dos elementos mais marcantes do filme é que a maioria da banda sonora pertence ao repertório de António Variações. O ator, Sérgio Praia, além de interpretar o músico no ecrã, empresta também a sua voz para as performances. Essa escolha afasta-se da prática comum de se usar música instrumental em bandas sonoras cinematográficas, mesmo em biopics, muitas vezes composta especificamente para o filme ou retirada de outros catálogos. Segundo Armando Teixeira, produtor musical do projeto, o realizador rejeitou a ideia de usar música instrumental, frequentemente utilizada para transmitir emoções, contextualizar cenas ou guiar os sentimentos do público. Essa decisão, por si só, levanta uma questão interessante que foi colocada quando dei uma conferência sobre este filme: Achas que não usaram música instrumental por terem medo de transmitirem sentimentos errados?

Sentimentos errados ou fidelidade artística?

Responder a essa pergunta com precisão exigiria acesso às intenções de João Maia e da sua equipa, mas a própria ideia de “sentimentos errados” leva-nos a duas reflexões. Primeiro, há dois arcos narrativos principais do filme: o percurso de António Variações rumo ao sucesso e a sua relação homoafetiva com Fernando Ataíde, o fundador da discoteca Trumps, espaço emblemático da cena LGBTQIA+ lisboeta. Para muitos, a representação de vivências queer no cinema já é suficiente para caracterizar uma obra como cinema queer. Contudo, se não há uma afirmação explícita de que essa era a intenção da produção, como interpretar a subjetividade expressa no filme? Quem está a contar essa história e de que lugar de fala ela parte? São pessoas heterossexuais a representar a vida de pessoas queer?

A escolha de utilizar a música de Variações reforça uma abordagem de fidelidade à figura que o cantor representa na memória coletiva. Mas há também um potencial risco nessa opção: os membros da sociedade portuguesa, em grande parte, já construíram uma perceção/opinião  de António Variações como personalidade cultural e, em particular, como símbolo LGBTQIA+. Assim, evitar música instrumental pode ser uma tentativa de não sobrecarregar a narrativa com interpretações subjetivas, deixando que as músicas “originais” suportem o significado do filme.

Música, emoções e identidade

Outro ponto que merece atenção é como a escolha musical afeta a relação entre o público e o filme. Anahid Kassabian, no seu livro Hearing Film: Tracking Identifications in Contemporary Hollywood Film Music, explora os efeitos da familiaridade musical no cinema. Ao ouvir uma música reconhecível como a “Canção de Engate”, os espectadores podem ativar memórias pessoais associadas a ela, ampliando ou desviando o impacto emocional da narrativa. Assim, ao utilizar exclusivamente arranjos das músicas de Variações, o filme permite que cada espectador traga as suas próprias experiências para a obra, criando um diálogo afetivo entre a memória pessoal e a narrativa no ecrã.

Por outro lado, bandas sonoras compostas especificamente para um filme, como Kassabian argumenta, têm o poder de conduzir de modo mais controlado as emoções dos espectadores, promovendo uma imersão mais alinhada com a visão dos criadores. Em Variações, a escolha por não seguir essa convenção pode ser vista como um gesto de respeito às perceções culturais que o público já tem de António Variações, mas também pode refletir, de facto, essa tentativa para evitar qualquer “erro” interpretativo ao representar uma figura com valores tão vincados na sociedade portuguesa.

A contradição da fidelidade

O cineasta João Maia afirmou em entrevistas que o filme tinha o propósito de mostrar “outro lado de Variações“, sugerindo uma procura pela fidelidade histórica que não é tão conhecida do público. No entanto, ao usar apenas arranjos das músicas originais, a obra abriu espaço às sensações imprevisíveis que o filme possa suscitar. Uma canção que no filme é enquadrada por uma cena alegre pode despertar tristeza em alguém que a associa a um momento difícil da sua vida. Essa dualidade revela que, apesar de todo o esforço de reconstrução histórica, nunca será possível capturar ou representar completamente a complexidade da identidade de António Variações (nem de outra figura musical).

No final, Variações não é só um filme sobre um cantor e interprete. É uma reflexão sobre a forma como a música e a arte ressoam em diferentes públicos e em diferentes momentos. E, como sugiro com o título deste artigo, talvez sejam apenas mais variações sobre um mesmo tema na representação musical no cinema: a luta pela autenticidade e liberdade de expressão num mundo cheio de sentimentos interpretados como “errados”.



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