
Aviso: este artigo contém spoilers sobre o thriller Conclave.
O filme Conclave (2024), realizado por Edward Berger e baseado no livro homónimo de Robert Harris, é um thriller político e espiritual que explora os bastidores do processo de eleição de um novo Papa. O enredo é conduzido pelo Cardeal Lomeli (Ralph Fiennes), responsável por organizar o conclave após a morte do Papa. Também em destaque está a Irmã Agnes que, tal como Fiennes, deu a Isabella Rossellini uma nomeação nos Óscares. Intrigas, alianças e segredos obscuros marcam a narrativa, culminando num twist final que desafia não só a estrutura interna da Igreja Católica, mas também a percepção do público sobre género e identidade.
Último aviso de spoilers 🚨
No final do filme, é revelado que o Cardeal Benitez (Carlos Diehz), eleito como o novo Papa, é intersexo – nasceu com características sexuais que não se enquadram nas definições típicas de masculino ou feminino. Este facto era do conhecimento do falecido Papa, que não só o aceitou como também lhe permitiu ascender à posição de cardeal, algo inédito e controverso. Benitez, em conversa com Lomeli, recusa qualquer intervenção médica que altere a sua condição, afirmando com serenidade: “Eu sou como Deus me fez.”
Identidade intersexo: o que é e como é representada
A identidade intersexo refere-se a pessoas nascidas com características biológicas – genitais, cromossomas ou hormonas – que não se alinham inteiramente com as categorias binárias de sexo masculino ou feminino. Estas condições ocorrem naturalmente em cerca de 1,7% da população, sendo que muitas vezes só se apercebem mais tarde na vida. As pessoas intersexo (ou intersexual) continuam a ser invisibilizadas ou tratadas como tabus em muitas sociedades. Em Portugal, o celebrado músico Salvador Sobral revelou ser intersexo em 2024.
O twist de Conclave não só humaniza esta experiência como a contextualiza no seio de uma instituição historicamente rígida como a Igreja Católica. Esta escolha narrativa é um convite para refletir sobre a diversidade humana, frequentemente marginalizada, mesmo em espaços que deveriam ser de acolhimento e compaixão.
Género e poder na Igreja Católica
O twist de Benitez toca também numa questão mais ampla: o género e o afastamento das mulheres e de pessoas de género diverso das posições de decisão e poder na Igreja. Desde há séculos, a Igreja tem uma hierarquia exclusivamente masculina, onde as mulheres, apesar de desempenharem papéis fundamentais nas comunidades católicas, estão impedidas de aceder ao sacerdócio e, consequentemente, a posições de maior influência, como o papado.
Foi também no seio mais conservador da Igreja Católica que surgiu o conceito de “ideologia de género”, um termo pejorativo usado para atacar movimentos feministas e LGBTQIA+.
Benitez representa uma disrupção neste sistema binário e hierárquico. A sua eleição enquanto pessoa intersexo é um ato simbólico que coloca em xeque a insistência na conformidade binária de género e no afastamento de certas pessoas do espaço sagrado e decisório. A sua eleição no thriller Conclave é um choque da Igreja com a realidade.
Um passo para a reflexão
O impacto de Conclave vai além do entretenimento. O filme força-nos a confrontar preconceitos, desafiar normas e considerar o que significa inclusão num mundo que ainda resiste à diversidade. A mensagem do filme, encapsulada na frase de Benitez – “Eu sou como Deus me fez“ –, serve de lembrete sobre a dignidade intrínseca de todas as pessoas. É uma crítica à exclusão praticada em nome da tradição e uma chamada à Igreja – e à sociedade – para que reconheçam a riqueza das identidades humanas.
Conclave é, no fim de contas, uma história sobre humanidade, imperfeições e a possibilidade de transformação. Num mundo cada vez mais polarizado, é um convite à empatia e à reflexão. Afinal, se a fé se baseia no amor e na aceitação, por que não começar por aí?

Deixa uma resposta