Novo Estado Novo

Novo Estado Novo

A 9 de fevereiro, estou no segundo aniversário da CURVS, uma festa que celebra todas as expressões queer, body e sex positive que tem lugar no Planeta Manas, na Rua Ary dos Santos, em Lisboa, sede da Associação Cultural Mina. Na CURVS todas as pessoas podem mostrar o corpo e divertir-se com quem e onde quiserem e existe o objetivo expresso de organizar um espaço e uma cultura que recusa e desafia a reprodução do preconceito sistémico.

São duas da manhã quando duas dezenas de agentes da Equipa de Intervenção Rápida (EIR) da Polícia de Segurança Pública (PSP), com armas de fogo, bastões e capacetes, e acompanhados por inspetores da Proteção Civil, invadem a festa. Entram nas salas a correr instalando o pânico entre as pessoas presentes informam que o espaço está encerrado e ordenam a saída imediata a todas as pessoas sem, em nenhum momento, apresentarem qualquer documento ou notificação de uma inspeção, prova de decisão judicial, indício de flagrante delito, crime violento ou iminência de crime. Por volta das três horas da manhã, com dezenas de pessoas ainda no interior, os agentes da EIR empurram-nos para concentrar o grupo num único local. Grita-se Fascismo nunca mais!

Sento-me numa mesa com o telemóvel na mão, preparado para registar violências policiais. Um dos agentes agarra-me no braço e dá-me ordem para que me levante e saia. Respondo que o farei mal haja espaço para sair em segurança e evitar atropelamentos. Um segundo agente, ao lado dele, grita na minha direção para obedecer. Respondo invocando o direito de gravar imagens da atividade policial, que estipula que os agentes não podem impedir a gravação de imagens do seu trabalho1 [De acordo com o artigo 70.º do Código Civil e com a diretiva interna da PSP 04-INSP-2014]. Nesse momento, começo a filmar a nossa interação. Em resposta, o segundo agente agarra-me na mão que segura o telemóvel e tenta impedir a gravação. A agressão fica registada em vídeo.

Um dos agentes da PSP aproxima-se, grita e ordena ao agente que me liberte. Está vestido com uma farda diferente. Depois, leva-me para uma sala adjacente e pergunta-me porque é que estou a resistir à polícia. Procuro explicar que não tenho intenção de resistir, mas sou consistentemente interrompido. O agente repete que tenho de seguir as ordens da PSP para evitar consequências — não chego a perceber a que tipo de consequências se refere — e, estende-me a mão em sinal de concordância. Recuso. “Boa, estás a fazer-me um favor”, responde, e leva-me de volta ao salão principal, onde se encontra o grupo.

A polícia apertou ainda mais o cerco e empurrou-nos para a saída. Nesse momento, numa tentativa de humilhação, um dos polícias pressiona o seu bastão contra o meu corpo de forma sexualizada. Somos empurrados para as escadas, que estão às escuras, uma vez que a polícia arrancou as decorações luminosas. Descemos os seis lanços de escadas. Muitas pessoas trazem a roupa na mão porque a PSP não autorizou que utilizassem o bengaleiro para se vestirem. Na rua, entre os carros e as carrinhas estacionadas, e enquanto a polícia bloqueia a entrada do edifício, esperamos.

Perto das cinco da manhã, a PSP abandona o local. A intervenção das forças de segurança que acabo de descrever não é um episódio isolado. Surge na sequência da ação policial que impossibilitou a anterior edição da festa CURVSFamily Reunion, prevista para 20 de dezembro de 2024, e a invasão de 18 de outubro desse mesmo ano, quando a PSP interrompeu as filmagens de um documentário da produtora de cinema Terratreme no mesmo local.

As rusgas ao Planeta Manas acontecem sempre sem aviso e sem documentação que as sustentem. São coordenadas pela PSP e executam-se sempre de forma danosa: acontecem no dia dos eventos, a meio das festas, dos momentos de convívio ou de trabalho. Parece que, qualquer que seja o uso do espaço, é válida para um assalto da PSP, uma vez que o local se assume como um “espaço inclusivo centrado na comunidade artística underground” e com um “compromisso com políticas queer transfeminista e anti-racista.”

Pode soar contraditório ler os relatos destes abusos no mesmo ano e na mesma cidade em que a Câmara Municipal de Lisboa acolhe o evento EuroPride, mas, quem tem estado atento, sabe que a bandeira arco-íris tem sido usada apenas como um produto de marketing para promover o turismo através da ideia de um país imaginário, politicamente progressista e inclusivo. A maioria das pessoas LGBTQIA+ que vive em Portugal não só continua a ser sujeita a discriminação médica, laboral e habitacional, como a uma crescente, sublinhe-se, ameaça de violência policial. Esta estratégia de Pinkwashing que mobiliza performaticamente a ilusão de aliança com as comunidades LGBTQIA+ para esconder violações de direitos humanos, não protege estas comunidades. E está a normalizar-se em Portugal, como, em boa verdade, está a normalizar-se no resto da Europa, com as celebrações do Orgulho a serem definidas pelos seus patrocinadores corporativos, como a Idealista, a Colgate e a MasterCard, ao invés de pelas realidades materiais e reivindicações políticas das pessoas LGBTQIA+, em busca de emancipação coletiva.

Ações de higienização da PSP têm ocorrido permanentemente ao longo das últimas décadas, em bairros onde existem comunidades que o sistema considera periféricas. Porém, nos últimos meses, a violência destas ações tem-se ampliado, tanto em área de intervenção, como em visibilidade e consequente impunidade.

Recordemos a operação que aconteceu na Rua do Benformoso a 19 de dezembro, publicamente validada pelo atual primeiro-ministro Luís Montenegro com a seguinte frase: “uma coisa que me parece óbvia, é muito importante que operações como esta decorram, para que haja visibilidade e proximidade no policiamento e fiscalidade de atividades ilícitas.

É neste contexto que a PSP mostra ser a mão que executa a vontade de um Governo autoritário, o que, aliás, faz parte da sua história. Esta é a mesma instituição que, incumbida da manutenção da ordem e segurança públicas, se encarregou de aplicar as leis do Estado Novo, executando medidas de segurança sobre as identidades dissidentes do regime.

Durante os anos de ditadura, a PSP manteve a repressão e a vigilância apertadas dos locais de reunião e convívio, efetuando rusgas de surpresa, sem notificação ou decisão judicial. Muitas destas ações resultaram na aplicação de medidas de segurança aos “indigentes” (termo empregado pelo Regime), como o internamento compulsivo em manicómios criminais, casas de trabalho ou colónias agrícolas. Nestes estabelecimentos de “reeducação” (termo empregado pelo Regime), homens e mulheres homossexuais e bissexuais, pessoas trans, pessoas género-diversas, pessoas acusadas de conduta imoral e mendicidade, prostitutas e prostitutos, pessoas neurodivergentes e pessoas com deficiência, viam seus pertences confiscados, o cabelo rapado, eram lavados com desparasitante e água fria, vestidos com fardas de algodão, com uma placa de identificação pendurada ao pescoço, e obrigados a trabalhar sob a mira de armas de agentes da PSP.

Só no Asilo da Mitra de Lisboa, entre 1933 e 1975, a PSP foi responsável pela hospitalização forçada de mais de 30.000 adultos e crianças. O seu “crime” era o de serem considerados dissidentes, indesejáveis aos olhos de um regime fascista2.

A descriminização da homossexualidade em Portugal viria a acontecer só em 1982, provando que a democracia não foi suficiente para garantir a segurança e o usufruto pleno dos direitos humanos pelas pessoas pertencentes à comunidade LGBTQIA+.

A revolução não foi feita para putas e paneleiros!“, é a famosa frase do General Carlos Galvão de Melo (um elemento da Junta de Salvação Nacional) em reação ao primeiro manifesto dos movimentos de libertação gay após o 25 de Abril de 1974. Passados cinquenta anos, não nos esquecemos. Aprendemos. E resistimos.


 Ricardo Batista em colaboração com Dusty Whistles


  1. De acordo com o artigo 70.º do Código Civil e com a diretiva interna da PSP 04-INSP-2014. ↩︎
  2. Depois de 1974, as pessoas internadas no asilo da Mitra de Lisboa não saíram em liberdade. A instituição passou da gestão da PSP para a Santa Casa da Misericórdia, e hoje ainda existe, como casa de acolhimento de pessoas idosas. Em 2025 ainda vivem da Mitra de Lisboa pessoas que lá
    foram internadas pela PSP durante o Estado Novo. ↩︎


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