
“Quem cuida do jardim“, a mais recente criação da companhia Causas Comuns, encenada por Cristina Carvalhal, mergulha-nos num mundo pós-apocalíptico onde quatro sobreviventes tentam decifrar pistas do passado para imaginar o futuro da humanidade. Em cena estão Alice Azevedo, Bruno Huca, Carla Bolito e Diogo Freitas, que dão vida a personagens que habitam este espaço de fim – ou de possível recomeço.
Conversámos com Alice Azevedo, que partilha reflexões sobre a criação da peça, o papel político do teatro e o que ainda pode florir num mundo devastado.
Uma digressão em movimento

“Quem Cuida do Jardim” apresenta uma narrativa distópica, mas também uma vontade de partilhar, investigar e imaginar novos caminhos. A peça tem circulado por diferentes regiões do país, como Vila Nova de Famalicão e o Porto. A primeira pergunta a Alice Azevedo surgiu da curiosidade sobre como tem sido esta itinerância:
“Quem Cuida do Jardim” é uma distopia onde quatro sobreviventes tentam encontrar “ideias para salvar uma coisa que já nem sequer existe“. Como tem sido a digressão destas quatro personagens pelos palcos portugueses? A resposta também se faz nómada?
Andar em digressão tem sempre algo de extraordinário. É uma forma (mesmo que não seja essa a intenção), de partilhar ideias, reflexões, medos, esperanças, piadas. Este espectáculo em particular, onde as personagens já estão à partida a querer divulgar e discutir ideias, reflexões, medos, esperanças (e tendo alguma piada), presta-se muito à itinerância. A resposta tem sido muito boa, de norte a sul do país, creio que também por isso.
Cuidar como ato radical
Neste mundo em fim de ciclo, nem tudo é destruição. A peça propõe-nos também novas formas de existir. Uma das personagens é descrita como pertencente a uma nova espécie humana, criada com base no cuidado — uma ideia utópica que contrasta com a dureza do cenário em palco. Mas Alice interpreta uma personagem humana dita convencional neste contexto quimérico.
Como foi dar corpo e voz a uma ideia tão utópica? Como se refletiu em ti e na forma como te encontras com ela?
A minha personagem é uma humana muito convencional, mas faz parte deste grupo onde uma outra personagem (interpretada por Diogo Freitas), é dessa tal nova espécie criada com base na ideia de ‘cuidado’.
Eu dei corpo e voz a uma pessoa mais comum – e isso enriqueceu muito a relação da minha personagem com este ‘novo tipo de pessoa’. Acho que a minha personagem sempre a olhou com condescendência – como as gerações anteriores olham para as seguintes, achando-se mais sábias dos meandros do mundo. E se por um lado esse reflexo ajuda a manter tradições que por vezes podem significar sobrevivência, por outro corta as asas à imaginação e às possibilidades de futuro que a juventude traz (seja a juventude de uma pessoa ou de uma espécie, suponho).
Memórias que não ficaram para a história
“Quem Cuida do Jardim” mergulha em escolhas passadas, caminhos esquecidos e formas de vida apagadas. Neste mundo em ruínas, resta ainda a vontade de compreender o que nos trouxe até aqui — e o que poderia ter sido diferente. É nesse processo de escavação da memória coletiva que as personagens se movem.
A peça confronta-nos com escolhas e memórias esquecidas. É nesse confronto que encontras espaço para imaginar um renascer — ainda que das cinzas?
Acho que a minha personagem não imagina um renascer da humanidade, neste mundo pós-apocalíptico. Está ainda na fase anterior a essa, a de ainda se estar a tentar convencer de que isso é sequer possível de imaginar.
E é nessa busca que este grupo se lança em grandes investigações, focando grandes marcos da história como nos é normalmente contada, mas também focando momentos e sítios que ‘não ficaram para a história’ – formas de viver que acabaram e foram sendo esquecidas, que não couberam na narrativa ‘de progresso’ em que tendemos a montar a história, mas que podem ter muito para nos ensinar (como todas as outras).
Neste grupo, há pessoas mais esperançosas, com visão para o futuro, para esse imaginar de um renascer da humanidade. A minha personagem também tenta trabalhar para isso, mas está mais agarrada ao processo – se por um lado é cética em relação ao resultado, fica fascinada e entretida com a pesquisa, e o pensamento, mesmo antes de este chegar a uma conclusão.
Aconselho a reflexão – e depois logo vemos se fazemos alguma coisa com ela.
“Já tinhas visto algo assim?”

Há, em “Quem Cuida do Jardim”, uma convocação simbólica — mas poderosa — de figuras históricas e marginais: bruxas, bichas, lésbicas, pessoas trans, mulheres recoletoras. A peça propõe um olhar para formas de conhecimento e cuidado que a história dominante ignorou ou apagou. E fá-lo sem panfletos, mas com perguntas.
A peça parece querer oferecer um regresso à importância histórica que bruxas, bichas, lésbicas, pessoas trans e mulheres recoletoras tiveram na guarda do conhecimento e da humanidade como um todo. Como foi para ti trazer aos palcos uma perspetiva de resistência, de superação e de sobrevivência, mesmo num mundo em fim de ciclo?
Acho que a peça não é um manifesto, na minha leitura. Não é tanto sobre ‘resistência e superação’. Estas personagens, deparando-se com a provável extinção da sua espécie e com o fim do mundo como o conheciam, estão a tentar perceber como é que a coisa podia ter sido feita de melhor maneira, sim, e quem sabe para a tentar fazer de melhor maneira se ainda forem a tempo. Essa ideia de futuro, e de possibilidade, está presente.
Mas não conta a história de como estas pessoas sobreviveram, e superaram grandes desafios contra todas as expectativas – para isso temos sempre os clássicos (pessoalmente, adoro a Odisseia). Acho que o foco aqui é em pequenas histórias, factos cosidos em linhas de pensamento, é a magia do ‘olha aqui isto, já tinhas visto algo assim?’.
Faz-me lembrar histórias que a minha mãe me contava em criança, algumas das quais vinham já com a moral incluída, ‘moral da história:…’, mas sobretudo falavam-me de coisas novas, expandiam o que eu podia achar sobre o que quer que fosse.
Isto tudo para dizer (eu perco-me): não é tanto sobre a peça falar da ‘importância histórica’ que bruxas, bichas, lésbicas, pessoas trans e mulheres de comunidades recoletoras tiveram no que quer que seja. É mais sobre mostrar, ‘olha, já reparaste que…’, ‘olha, alguma vez pensaste que…’. Mostrar histórias, possibilidades, análises.
Adoro contar histórias: e a importância histórica, deixo para o público decidir quando estiver a tecer a sua história da peça que veio ver.
“A política é algo que está sempre presente no teatro”
A vida, o corpo, o afeto, o ativismo — tudo se torna matéria artística e política no palco de “Quem Cuida do Jardim”. Para Alice Azevedo, essa dimensão é inevitável, porque o teatro é feito no presente e para o presente.
Hoje, que lugar ocupa a política – a da vida, do corpo, do afeto, do ativismo – no teu trabalho artístico? Como vês a evolução destas vozes na cultura em Portugal?
A política ocupa um lugar preponderante no meu trabalho em teatro.
Se política for algo que se refere à forma como nos organizamos e vivemos em sociedade (e não reduzido à ideia de política como política partidária apenas), tudo é político, e a política ocupa os lugares todos da vida.
Mas há lugares mais propícios a pensar ativamente nas coisas politicamente, e elaborar pensamento sobre isso (para algumas pessoas é a leitura, para outras grupo de amigos, para outras ainda a militância ativista ou partidária, etc).
Eu, como faço teatro, e como isso é uma coisa viva que dialoga com o presente, que faz parte de onde se insere, forçosamente, é uma arte que pode puxar a política quer queiramos quer não (pensemos por exemplo em todas as peças de teatro que são ‘críticas de costumes’ que estudamos na escola, ou como a revista, que inclui crítica e reflexão, se tornou uma forma de teatro tão famosa).
Seja como intérprete, como encenadora ou como dramaturga, acho que a política é algo que está sempre presente no teatro. Gosto do meu teatro assim, vivo, e acho que não é preciso ter medo disso.
Uma violeta também é um jardim
Longe dos palcos, também o cuidado se revela como processo — nem sempre perfeito, mas sempre possível. Um eco ao espírito da peça: entre metáforas e realidade, há sempre espaço para cuidar, aprender e recomeçar.
Por fim, quando não estás em palco, onde encontras e como cuidas do teu jardim?
Acho que já há muito tempo que não sei dele. Acho que a última vez que cumpri essa metáfora foi de forma muito literal: um período curto da vida que vivi fora de um contexto urbano, com uma pequena horta e jardim para cuidar.
Sem querer ser demasiado cliché, mas sendo, nesse ato de cuidar e me relacionar diariamente com a flora, encontrei muita paz e espaço de reflexão pessoal e social também.
Mas na minha vida urbana, deixo morrer as plantas todas de apartamento – exceto uma violeta que, embora nunca mais tenha dado flor, está super viçosa, contra todas as expetativas. Também ela me ensina algo que, um dia, espero aplicar quando cuidar do meu jardim.

Quem Cuida do Jardim — em cena perto de ti
A peça continuará digressão em três novas cidades durante os meses de maio e junho. Links diretos para bilheteira respetiva:
- Lisboa – CAL – Centro de Artes de Lisboa: 14 a 25 de maio
- Penafiel – Ponto C: 6 e 7 de junho
- Torres Vedras – Teatro-Cine: 14 de junho
Agradecemos a oportunidade e a disponibilidade de Alice Azevedo e da sua equipa para esta entrevista.

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