“O que está em jogo não são direitos, é o mundo inteiro” – María Galindo em entrevista

“O que está em jogo não são direitos, é o mundo inteiro” – María Galindo em entrevista

Figura incontornável do feminismo latino-americano, María Galindo é artista, ativista e fundadora do coletivo boliviano Mujeres Creando que, desde os anos 1990, cruza arte, política e ação direta. Com uma voz irreverente e profundamente crítica, Galindo recusa categorias fixas e rejeita a normalização institucional dos movimentos sociais. A sua obra vive nas ruas, nas paredes, nas performances e na palavra — e é inseparável da sua luta.

Mujeres Creando é uma frente de combate contra o patriarcado, o colonialismo e o capitalismo — uma luta que, para Galindo, deve ser constantemente reinventada. O coletivo torna visível o que é silenciado, e fê-lo num contexto social e político onde as mulheres, as pessoas LGBTI+ e as classes populares continuam a ser marginalizadas e perseguidas. A sua obra, sempre inseparável da sua luta política, cruza arte, intervenção pública e pensamento crítico, abrindo espaço para o que chama de “feminismo bastardo” — um feminismo impuro, indisciplinado e profundamente enraizado nas margens sociais.

A artista estará em Portugal no âmbito do Desejar – Movimento de Artes e Lugares Comuns, que decorre de 10 a 14 de junho em Braga. A sua participação acontecerá no dia 12 de junho, com uma conversa intitulada “Como tirar do adormecimento o desejo de fazer revolução?” às 16h00, seguida da exibição do seu filme Revolución Puta, pelas 17h00, no gnration.

A propósito da sua vinda a Portugal, Galindo partilhou connosco uma reflexão crua e urgente sobre arte, censura, feminismos bastardos e a importância de provocar mundos novos.

Revolución Puta de María Galindo (2023)

Mujeres Creando nasceu como um coletivo artístico e político. O que representa para si essa interseção entre arte e ativismo?
Não se trata da versão já conhecida de mais um “artivismo”, de todo. Mujeres Creando é um espaço experimental de luta social e, dentro dessa luta, uma das reflexões e ações mais relevantes é a criação de novas linguagens de resistência. Esse processo criativo e político recorre a categorias do mundo da arte e do campo simbólico e afetivo das sociedades.

Mujeres Creando transfere essas reflexões para outros espaços, não endogâmicos nem institucionais, de forma crítica, produzindo e inventando continuamente linguagens de luta.

Que críticas faz aos feminismos hegemónicos?
Eu não falaria de feminismo hegemónico, mas sim de tecnocracia de género ligada a instituições como o Estado, organismos internacionais, ONG e até o mundo empresarial, que se apropriam das reflexões em torno do género para benefício próprio. Isto deve-se ao papel fundamental das mulheres na sustentação do neoliberalismo, mas também ao controlo da reprodução, à obtenção gratuita dos cuidados e ao facto de os feminismos, apesar de tudo, continuarem a ser dos movimentos sociais mais vivos.

Orçamentos de igualdade, empoderamento e o binarismo sexo/género são os pilares desta tecnocracia. Trata-se de uma máquina que devora tudo — até a interseccionalidade foi posta na moda, desativando o seu potencial.

Como define o conceito de “feminismo bastardo” que propõe?
Trata-se de outra genealogia feminista, que nada tem a ver com essa narrativa de primeira, segunda e terceira vaga. O bastardismo é uma metodologia, um ponto de partida e um ângulo de visão ao mesmo tempo. Parte da ilegitimidade. Interpela as identidades únicas ou puras, vê-as como sobrepostas e compostas por fragmentos, sem essencialismo identitário. Abre-se à complexidade e contradição sem limites, e questiona a visão de vítima/vitimizador para interpretar a violência como origem, onde vítima e agressor se sobrepõem. Estes são alguns dos seus elementos centrais.

Tem enfrentado diversos processos judiciais e atos de censura. Como interpreta a relação entre liberdade artística e repressão política?
A repressão policial e judicial criminaliza-te, tenta amedrontar-te, silenciar-te, usar-te como exemplo público — tal como a queima de bruxas. Vivi esse percurso completo, desde as minhas primeiras ações político-artísticas. Nessas repressões, muitas vezes senti-me muito só, desesperada — cheguei a perder equipamento de filmagem.

Mas também aprendi muito. Dediquei-me a desmontar o jogo repressivo com tal irreverência que hoje existe uma cumbia com o meu nome, intitulada com o regulamento disciplinar da polícia boliviana, transformado num mantra de rebeldia: “DIGIPIDIRIPI”. No dia da estreia, havia 14 mil pessoas reunidas espontaneamente.

Transformei a repressão e a censura em parte da minha obra e da obra coletiva de Mujeres Creando — porque, de facto, são parte de todas elas. Os acontecimentos que uma obra suscita fazem parte da própria obra, até a indiferença total. [risos]

Sempre procurámos ultrapassar os limites. Nem a sociedade, nem a polícia, nem os media percebem que estão perante um ato artístico — operamos sempre no território da LOUCURA, IRREVERÊNCIA, ABSURDO. Mas é importante dizer que também dentro de museus, galerias, cursos de artes ou livros de arte há muita censura e repressão, tão bem disfarçadas que não se conseguem ver nem denunciar.

Qual é o significado, para si, de participar num contexto de criação comunitária como o que se vive atualmente em Braga? Acredita que é possível construir pontes entre realidades sociais e culturais tão distintas?
Não sei se é possível, mas sei que é necessário, urgente, e que vale a pena tentar. Sei que estamos perante pontes falhadas, destruídas — e que não nos separa um oceano, mas sim um aterro de preconceitos e relações de poder antigas.

Apesar disso, vale sempre a pena tentar de novo. Tal como fazem os barcos precários que partem apesar do risco de naufrágio. Eu parto para provocar, mesmo sabendo que me posso afundar no caminho.

Maria Galindo - Entrevista

Quais são, na sua opinião, os principais desafios que enfrenta hoje a população LGBTI+ na América Latina? E que lutas considera que são partilhadas com o contexto europeu?
Com o contexto europeu, não partilhamos nada. Quero dizer, através desta entrevista, que vivemos noutro mundo. Não há um só mundo, há muitos mundos, muito complexos.

Não aceito a segmentação LGBTI+ — não me servem essas categorias, não me servem politicamente. Vejo-as como categorias coloniais, impostas de norte a sul. Prefiro falar em pluralismo sexo/género. A heterossexualidade obrigatória foi parte do padrão colonial imposto com a invasão de 1492 e o processo de extirpação das cosmovisões indígenas. Isso é muito importante aqui.

Em termos globais, o que chamam LGBTI+, tal como as grandes massas de pessoas migrantes e não brancas, serve hoje de pretexto para políticas de ódio. Isso torna ainda mais relevante a resposta desses universos. Não devemos ceder ao chantagem da “perda de direitos”. O que está em jogo não são os direitos de um segmento da sociedade, mas da sociedade e do mundo como um todo — democracia, bem-estar, tudo o que possamos imaginar. E é aí que devemos concentrar as nossas energias, que não são ilimitadas.

Não serão as esquerdas, entre aspas, a salvar-nos — muitas cumprem a agenda das direitas, outras estão perdidas ou caducas. Acredito que chegou o momento de emergirem o animalismo, o ecologismo, os feminismos, os “criancismos” e os futurismos como lugares de discussão política.

Para terminar, que mensagem gostaria de deixar às comunidades queer e feministas em Portugal?
Não quero deixar mensagens. Limito-me a provocar.


As palavras de María Galindo não procuram consensos nem conforto. Desafiam, desestabilizam e propõem novas formas de ver, de resistir e de existir. Ao recusar falar em nome de um só feminismo ou de uma só identidade, convida-nos a pensar a partir da margem, da mistura, da contradição. A sua presença em Braga, no âmbito do Desejar, será uma oportunidade rara para escutar ao vivo essa provocação urgente — e, quem sabe, acordar em nós o desejo de fazer revolução.


María Galindo estará em Portugal no âmbito do Desejar – Movimento de Artes e Lugares Comuns, que decorre de 10 a 14 de junho em Braga. A sua participação acontecerá no dia 12 de junho, com a conversa “Como tirar do adormecimento o desejo de fazer revolução?” às 16h00, seguida da exibição do seu filme Revolución Puta, pelas 17h00, no gnration.

Agradecemos a oportunidade e a disponibilidade da artista e da organização para a realização desta entrevista.



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