Muito se tem escrito, refletido e falado nos últimos anos a respeito da repressão, especialmente das minorias. Sendo tema recorrente em diversas esferas da vida pública, é na literatura que encontramos a possibilidade de, pela imaginação e pela capacidade empática, nos colocarmos na pele de outros e, assim, tentar perceber de que forma a repressão persiste até hoje. Mas e quando essa perceção não chega a todos os domínios ou a toda uma sociedade? Quantas histórias contemporâneas conhecemos nós sobre a homossexualidade na Coreia do Norte ou na Rússia?

Responder a esta pergunta é difícil, mas algo é claro como a água: em regimes autoritários, a publicação de histórias assim é, na prática, impossível. Ainda assim, surgem casos de grande coragem, e risco, como o das autoras Katerina Silvánova e Elena Malíssova com o livro Um Verão de Lenço Vermelho.
Katerina, nascida em Kharkiv, na Ucrânia, conheceu Elena, da Rússia, em 2016, e juntas começaram a trabalhar no manuscrito. A popularidade da obra, contudo, acabou por conduzir à proibição de literatura LGBTQ+ no país. Após uma onda de ameaças de morte, ambas tiveram de fugir da Rússia. A história, porém, seguiu o seu caminho: foi traduzida em 2023 no Brasil e chegou este ano a Portugal pelo grupo Penguin, através da chancela Secret Society.
Um Verão de Lenço Vermelho

Não vos vou mentir: a narrativa tem incongruências, sobretudo no comportamento de algumas personagens. Todavia, o que me fez apreciar verdadeiramente esta leitura foi não só a diversidade do elenco, em que até as personagens secundárias acrescentam uma riqueza notável, mas também o contexto histórico e sociopolítico que molda a ação e influencia os nossos protagonistas, Iurka e Volódia.
Passada num campo de pioneiros, a obra retrata com realismo sentimentos de ausência de pertença, receio do futuro e a necessidade de compactuar com os ideais políticos para sobreviver e aspirar a uma vida fora do país. Essa pressão social torna-se palpável, sobretudo nas personagens mais velhas, e contrasta com a perspetiva de Iurka, de 16 anos, em comparação com a de Volódia, de 19, já sob o peso de ingressar na vida política. É um retrato cru de como crescemos moldados por múltiplas esferas sociais e como romper com elas pode ser não apenas difícil, mas uma verdadeira tortura.
Não se trata apenas de identidade ou orientação sexual, mas também do acesso a conhecimento. Quer em termos históricos, quer até em simples conversas íntimas, tudo se torna potencialmente subversivo e perigoso para o regime. Para Iurka e Volódia, que ainda conseguem vislumbrar o mundo exterior, essa abertura contrasta com o peso esmagador da família e da educação, que podem matar qualquer esperança. A narrativa não foge ao tema doloroso das “terapias” de conversão, expondo a forma como destroem vidas e perpetuam o sentimento de impotência.
De conhecidos a amigos e, depois, amantes secretos, a história de Iurka e Volódia acompanha-nos não apenas pela forma como é narrada, mas pela evolução emocional sentida ao longo das suas 600 páginas que, pela intensidade, parecem metade. O mergulho nos seus conflitos internos pode ser avassalador, mas oferece ao leitor uma visão completa da mente de quem vive oprimido, não só por um regime e pela sociedade, mas também por si próprio. A emoção é constante, e a intimidade entre os protagonistas, delicada mas intensa, irrompe como fogo ardente. Porque, infelizmente, continuamos a ver como o amor, e a sua demonstração, continua a ser um privilégio que milhares de pessoas não têm acesso.
Do que investiguei, este é, na verdade, o primeiro livro de uma trilogia, sendo que só consegui encontrar o segundo em russo, de 2021, e o terceiro, em alemão. Se os veremos traduzidos? Não faço ideia, mas vos garanto: a forma como este termina é o suficiente para nos aquecer o coração e sentir conclusão.
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Tropes: Forbidden Love, Coming of Age, Oppressive Regime, Secret Relationship, Found Family vs. Biological Family, First Love, First Desire, Tragic Undertones.
Aviso de gatilhos: Homofobia institucional e social, repressão política, ameaças e perseguição, terapias de conversão, pressão familiar e violência psicológica, referências a censura e ausência de liberdade, temas de auto-repressão e conflito interno.

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