Precisamos do nosso momento “Yippee-Ki-Yay, motherfucker!”

Quando o líder do Chega proferiu a expressão ideologia de género, embriagado pela euforia de um resultado eleitoral esmagador para o seu partido de extrema-direita, a estação televisiva onde eu acompanhava o resultado das Eleições Legislativas focou um dos simpatizantes do partido ou até, quem sabe, um dos futuros deputados do país. Olhava diretamente para a câmara enquanto colocava dois dedos dentro da boca e a língua de fora, sinal universal para asco.

Lembrei-me de uma daquelas frases que lemos algures na Internet e apontamos num caderninho para não nos esquecermos: “A linguagem cria o mundo, ele não é nada até o descrevermos. E quando nós o descrevemos, criamos distinções que governam as nossas ações” (Joseph Jaworski). André Ventura vem criando um mundo à medida das suas necessidades, desde a fundação do partido. Com a perfeita branquitude, a coqueluche do Chega lidera um mundo com medo dos imigrantes, de outras religiões, que inferioriza cores de pele mais escuras que a sua e que já não tem pudor em ostentar asco quando é referido ideologia de género. E como tem conseguido Ventura criar este mundo? Através da linguagem!

É com o politicamente incorreto que tanto apregoa – muitas vezes se socorrendo de lugares comuns pobres, gastos e pouco imaginativos – que a extrema-direita legitima a opressão das minorias. Já não se pode dizer nada, não há liberdade de expressão, agora toda a gente se ofende com tudo, não se pode brincar com ninguém… A palavra como semente de expressões e atitudes que perpetuam preconceitos e estereotipam minorias.

“Who said we were terrorists?”

Fiel escudeiro deste líder que sonha com um mundo pálido e inquisidor, Bruno Nunes publicou um vídeo nas redes sociais tentando insultar um jornalista estigmatizando a sua homossexualidade. Impulsionado pela força de um resultado nas urnas que legitima o discurso do seu partido, diz o deputado eleito pelo Chega: “decidi comprar-lhe um das Caldas (pénis em cerâmica). Vai numa caixa que, se ele não gostar, pode meter noutro pacote. E vai numa dimensão que eu creio que é suficientemente grande, mas se ele considerar que é pequeno para o que ele quer dar utilidade que nos contacte que nós fazemos chegar um maior”.

Para este (muito em breve) representante legal da democracia portuguesa dizer que alguém é homossexual é um insulto, talvez maior que aldrabão, mentiroso ou devedor ao fisco. Além de pretender insultar um jornalista pela sua homossexualidade, Bruno Nunes reforça o estereótipo do gay, do dildo e do pacote. Nada de novo sob o sol. O uso de chavões é uma das regras do livro de estilo do Chega, bem como a utilização de palavras que o politicamente correto (ou a linguagem inclusiva) já vinha paulatinamente extinguindo, como mariquinhas, termo “afetuosamente” utilizado por André Ventura para classificar o CDS-PP.

“What idiot put you in charge?”

O atual líder do CDS, Nuno Melo, provavelmente não terá ficado demasiado incomodado com a classificação, já que também ele se apresenta nas trincheiras no combate à linguagem inclusiva. Em 2018, indignou-se com Pedro Filipe Soares, quando este se enganou ao dirigir-se aos seus “camaradas e camarados”. Brincando com o erro, o deputado do Bloco de Esquerda disse que “a linguagem inclusiva tem destas coisas”, mas para Nuno Melo tratou-se de um “assassinar da língua portuguesa, para sublinhar proclamações de género ridículas”.

Já em janeiro deste ano, o Presidente do CDS voltou à carga na prioritária luta contra a linguagem inclusiva. A União Europeia, através do Instituto Europeu para a Igualdade de Género, enviou um documento aos deputados, entre os quais se inclui Nuno Melo, pedindo-lhes a adoção da dita linguagem. A resposta no Twitter/X foi esta: “O grau de censura social desta gente começa a ser opressivo e doentio. Quando os problemas dos nossos tempos são tão sérios já não há paciência para a idiotice desta conversa.”

“Sooner Or Later, I Might Get To Someone You Do Care About!”

Não é somente a classe política que precisa contar até dez antes de proferir declarações sobre assuntos poucochinhos, vá, como saúde pública. Estava Portugal ainda a lamber as feridas da pandemia da COVID-19 quando o presidente da Sociedade Portuguesa de Virologia, Vítor Duque, a propósito da varíola dos macacos, falou em “mais uma epidemia entre os homossexuais”. Alguns dirão – alguns disseram – que a maior particularidade de Vítor Duque não é a linguagem, que não se soube expressar, mas que a prioridade é a saúde e é essa a sua especialidade. Ora, eu digo que (e não sendo eu nenhuma Jane Goodall), ao contrário dos nossos amigos primatas, o ser humano é capaz de raciocinar e falar simultaneamente, informar sobre um vírus, os seus sintomas, as suas causas e as formas de o evitar e, ao mesmo tempo, não apontar o dedo a um grupo específico.

As palavras importam. Sempre importaram. Têm o dom de amedrontar ou encorajar, entorpecer ou inflamar, seduzir ou repelir, acarinhar ou agredir. Tão poderosas que Salazar e Caetano temeram-nas durante os 48 anos de ditadura e livros, notícias, peças de teatro e músicas tinham que passar pelo crivo do “lápis azul” para que o povo não lesse ou ouvisse palavras erradas e lutasse pela sua liberdade. Hoje, com o privilégio de vivermos em democracia, cabe-nos escolher como queremos usar o seu poder.

A arte imita a vida e a vida imita a arte e, tal como no filme “Assalto ao arranha-céus”, temos que optar entre ser o John McClane ou o Hans Gruber. Usar as palavras para o bem ou para o mal. Para elevar o outro ou para o rebaixar.

Ao deslegitimar a linguagem inclusiva e, muitas vezes, ao fazer da Assembleia da República uma tasca glorificada, alguns políticos portugueses têm optado por serem o vilão nesta luta contra o preconceito, nomeadamente a homofobia e a transfobia. Optemos nós por honrar a personagem de Bruce Willis e sermos os heróis da palavra, cientes que nos esperam as mesmas barreiras e desafios presentes na película dos filmes do grande ecrã e, muitas vezes, teremos que caminhar descalços sobre vidros. Para os outros, será chato conversar convosco, polícias de qualquer frase ou expressão, novos mini Kim’s Jong-un’s da língua portuguesa.

“You’d have made a pretty good cowboy yourself, Hans.”

Deixo dois exemplos:

Para sermos verdadeiros Jonh McClane’s teremos que explicar, vezes e vezes sem conta, sempre que alguém pergunta a um casal homossexual “quem é o homem da relação?” que, se for um casal de homens, existem dois homens na relação e, se for um casal de mulheres, a ideia é precisamente não existir nenhum homem na relação. À clássica frase “eu não sou preconceituoso, até tenho um amigo gay” devemos elucidar, sem descanso, que relações de convívio ou mesmo de afeto não são garante de inexistência de preconceito. Manuel Luís Goucha é um dos apresentadores de maior sucesso da televisão portuguesa. Quando anunciou o seu apoio à Aliança Democrática as críticas e os elogios no Twitter/X deixaram o seu nome nos trending topics. Não surpreende, o público tem com Manuel Luís Goucha uma incontestável relação de afeto.

Para os mais distraídos, o apresentador tem uma relação com Rui Oliveira há mais de 25 anos. Milhares de comentários, com afetividade, enalteceram a carreira de Goucha, a sua inteligência, cultura, elegância. Valorizaram a sua presença afável quase diária nas suas casas há tantos anos. E, sobretudo, aplaudiram a sua discrição quanto à homossexualidade. Como, ao contrário das bichas que se pavoneiam nas paradas ou andam aos beijos pela rua, ele não esfrega na cara das pessoas a sua orientação sexual. As pessoas, sinceramente, julgavam que o estavam a acarinhar dizendo que ele é um homem a sério porque deixa para o recato da sua casa o que é privado. As pessoas gostam de Manuel Luís Goucha. Verdadeiramente têm-lhe afeto. No entanto, quem dele tanto gosta, não está preparado para ver manifestações amorosas entre ele e o seu marido. Homossexual bom é homossexual que não mostra essas coisas.

Por isso, não. Se tens amigos, irmãos, irmãs, filhos que pertencem à comunidade LGBTQIA+ não quer dizer que não sejas preconceituoso.

O preconceito faz parte da natureza humana. É tão natural como a afinidade. Cabe-nos reconhecê-lo e combatê-lo diariamente. Criando um mundo melhor, uma palavra de cada vez.

Yippee-Ki-Yay, motherfucker!

Maria M.

Por Participante

Participantes que contribuem para o esQrever.

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