
Que papel desempenham as comunidades BDSM e Kink na história e na contínua luta pelos direitos LGBTQIA+ no Pride? A resposta revela a profunda interligação entre a liberdade sexual e a igualdade social.
O termo “kink” abrange uma gama diversa de desejos sexuais, desde linguagem obscena e spanking até BDSM, furries e pup play. As comunidades kink estão historicamente presentes em eventos do Pride, demonstrando que pessoas de todas as sexualidades podem estar envolvidas em práticas kink. A controvérsia sobre a presença do kink no Pride é recorrente e tenta questionar a validade dessa presença em eventos cada mais mais mainstream. Mas, além de importar reverter algum desconhecimento histórico, é crucial entender qual o verdadeiro significado nesta tentativa de normalização. Afinal de contas, o que é ser-se Queer?
Comunidades Kink sempre estiveram presentes no Pride
Historicamente, o kink sempre esteve presente no Pride e no movimento pelos direitos LGBTQIA+. Desde o início, em 1969, as práticas e comunidades kink têm sido parte integrante destas lutas. A ideia de que o kink no Pride poderia prejudicar crianças ou forçar participantes a realizar atividades sexuais não consensuais é repetida e refutada ao longo dos anos. Contudo, a tentativa de esconder estas práticas dentro da própria comunidade queer ignora as suas raízes históricas e significativas no movimento.
Líderes icónicas da libertação queer, como Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera, que foram perseguidas por “cross-dressing” numa época em que era considerado uma perversão sexual, personificam esta luta. Retóricas de normalização e a insistência em políticas de respeitabilidade apenas enfraquecem os princípios centrais da resistência queer.

De recordar que o público vaiou Sylvia Rivera enquanto ela, uma mulher trans latina, discursava num dos primeiros eventos do Pride em Nova Iorque em 1973. Rivera fez frente ao público ao acusá-lo por não se importar com pessoas trans e pessoas que não se encaixam no que o Orgulho “deve” parecer.
“Vocês dizem-me para abandonar e esconder o meu rabo entre as pernas. Eu não vou aturar essa merda. Fui espancada. Partiram-me o nariz. Fui presa. Perdi o meu emprego. Perdi meu apartamento para a libertação gay, e vocês tratam-me assim?” Rivera, que morreu em 2002, questionou a multidão: “O que diabos há de errado com vocês? Pensem nisso!”
Desde o primeiro tijolo atirado em Stonewall

A comunidade de couro, um subgrupo do kink, tem raízes profundas em espaços queer, remontando à década de 1940. Durante a revolta de Stonewall em 1969, a diversidade de participantes – mulheres trans racializadas, jovens queer em situação de sem-abrigo, drag queens, lésbicas e “leather daddies” – ilustra a diversidade e a união em momentos cruciais de resistência.
O movimento pela igualdade matrimonial nos Estados Unidos trouxe a ideia de que o único queer respeitável era aquele que encaixava, ironicamente, na ideia de família tradicional. Isso relegou à margem quem impulsionou a libertação queer, incluindo pessoas trans, trabalhadoras do sexo, pessoas racializadas e comunidades Kink. Com pontes de união nas lutas contra a patologização, o estigma e a vergonha, este é um grande grupo que historicamente se juntou para ganhar força perante a sociedade.
Comunidade BDSM apoiante durante a crise do VIH/SIDA
Na década de 1980 e 1990, com o advento da crise do VIH/SIDA, homens e mulheres da comunidade Couro (ou leather), por exemplo, foram algumas das primeiras pessoas a assumir a responsabilidade de cuidar de pessoas LGBTQIA+ doentes. Organizaram também festas e eventos BDSM para angariar fundos para contas médicas, fizeram o papel das suas enfermeiras e, muitas vezes, estiveram entre as únicas pessoas dispostas a fornecer toque humano e afeto nos seus últimos dias.

Por exemplo, na Noruega da década de 1970, ativistas LGBTQIA+ e profissionais de saúde criaram serviços e infra-estruturas de saúde para a comunidade discriminada. Com o advento do VIH/SIDA na década seguinte, ativistas usaram estas redes como base para uma ação concertada. Entre as primeiras pessoas a responder à crise iminente estavam ativistas e membras da comunidade fetichista norueguesa.
Todo este contexto não pode ser desconsiderado por uma questão de pseudo-saneamento de eventos de que estas comunidades sempre fizeram parte e, mais que isso, atuaram ativamente na sua defesa e celebração.
Invisibilidade das Mulheres e das pessoas assexuais (Ace)

A questão da invisibilidade das mulheres não pode ser aqui descurada. Não só na generalidade dos espaços da sociedade, mas também dentro da comunidade, esta é uma questão que deve ser tida em conta. Para contrariar a questão da invisibilidade feminina na comunidade kink, importa referir, por exemplo, o “femdom” e as suas várias leituras. Embora alguns aspectos desta comunidade possam ser sejam inerentemente excêntricos e não normativos, outros aspectos parecem menos extremos. Acontece uma simples inversão de papéis, onde mulheres são dominantes nos seus atos e desafiam tabus e normas sociais.
Por exemplo, atos de carinho e domínio suave, como um abraço mais firme por uma mulher assertiva, exemplificam como a heteronormatividade permeia a sexualidade mainstream. O mesmo abraço realizado por um homem a uma mulher seria considerado kink? O viés que as retóricas predominantes dão torna-se aqui óbvio, pois os mesmos atos são vistos de forma distinta conforme quem toma a posição dominante. Que é como quem diz, o poder. E o sexo vai muito além do mero ato, mas, sim, centra-se nesta dinâmica de auto-afirmação, de orgulho, deixando sempre bem definidos os limites do consentimento para intervenientes. E, tal como a apropriação do insulto usado como empoderamento das próprias pessoas LGBTQIA+, o mesmo é válido para a comunidade Kink.
Brenda Howard foi uma membra orgulhosa da cena Kink LGBTQIA+. Nos anos 70 e 80, grupos lésbicos Sadomaso (de que fizeram parte pessoas académicas como Gayle Rubin ou Patrick Califia) estiveram entre os primeiros defensores do feminismo inclusivo e sexualmente positivo. Esses grupos deram às mulheres queer um ideia de comunidade e empoderamento sexual que lhes havia sido negado.
Excluir a cultura de Couro Queer do Orgulho seria, portanto, ignorar as contribuições das comunidades que foram parte integrante da elevação de alguns dos subconjuntos mais marginalizados da comunidade LGBTQ+.
Reconhecer a Comunidade Ace Queer
Importa também referir que pessoas assexuais e todas as pessoas que se identificam com a comunidade ‘ace’ são membras válidas da comunidade queer. É igualmente crucial reconhecer a sua (in)visibilidade quando se trata de questões de comportamento sexual queer.
A aceitação e a inclusão de indivíduos ace reforçam que ser-se queer não é inerentemente ser-se sexual.
O Pride e a Comunidade Kink: Respeitabilidade vs. Radicalidade

Desde sempre que a acusação de uma comunidade LGBTQIA+ hipersexual perversa é feita por grupos conservadores e de extrema-direita. A natureza depreciativa dessas acusações permite que a vergonha possa florescer na mente das pessoas queer. Aliás, são precisamente estes movimentos que fazem alegações e divulgam imagens descontextualizadas para causar o pânico entre a população. Em mais de uma década de presenças em marchas e arraiais, nunca observei um ato sexual explícito. Pensar que é disso que se trata mostra uma profunda falta de conhecimento da realidade do ativismo em Portugal e dos seus momentos, e de uma moralidade e preocupação que nem se adequam ao nosso contexto.
A ideia de que a sexualidade queer provoca repulsa e nojo quando testemunhada por uma maioria heterossexual e/ou cisnormativa rima com vergonha e armário. Mas, também, mais recentemente, rima com respeitabilidade e normalização.
A história queer é uma história de resistência ao status quo. E é este mesmo status quo que pede aos grupos marginalizados para se comportarem de determinada forma para obterem simpatia mainstream. Vergar uma existência queer a esses moldes é uma contradição à própria essência queer. A comunidade BDSM e Kink desafiam essas normas, promovendo uma sexualidade queer radical e libertadora.
A tentativa de transformar o Pride num espaço exclusivamente “familiar” ignora a realidade de muitas famílias escolhidas queer que foram formadas à margem da sociedade. Ao tentarem criar uma imagem sanificada, dessexualizada e comercial da cultura LGBTQIA+, essas vozes ignoram a história diversa desta luta.
Orgulho é sobre resistência, inclusão e celebração de todas as formas de amor e identidade. Façamos ou não parte das comunidades BDSM/Kink, não podemos permitir que as pressões de respeitabilidade apaguem a história e a essência do movimento queer. Devemos-lhes isso.
Nota: Todas as imagens, exceto quando mencionado em contrário, são recortes do livro SEX de Madonna (1992).

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