
Falsamente acusada de ter causado um desastre aéreo que matou 67 pessoas, Jo Ellis viu a sua vida exposta e ameaçada por uma onda de desinformação alimentada por figuras da extrema-direita. A sua história, marcada pela coragem e pela luta por justiça, expõe um padrão global: o uso de mentiras para atacar pessoas trans e desviar atenções dos verdadeiros problemas. E Portugal, apesar de avanços nos direitos LGBTQIA+, não está imune a este fenómeno.
Em janeiro de 2025, um helicóptero Blackhawk colidiu com um avião comercial em Washington, DC, matando todas as 67 pessoas a bordo. Mas enquanto o país ainda digeria a tragédia, Jo Ellis, uma piloto trans da Guarda Nacional da Virgínia, acordava dias depois com centenas de mensagens de ódio nas redes sociais. Era acusada, falsamente, de ter sido a responsável pelo acidente — apesar de nem sequer estar presente.
A origem? Um post no X do influenciador de extrema-direita Matt Wallace, com mais de dois milhões de followers, que afirmava que Ellis tinha publicado um ensaio sobre disforia de género um dia antes do acidente e insinuava que poderia tratar-se de um “ataque terrorista trans”. A mentira foi vista por quase cinco milhões de pessoas. Nos dias seguintes, figuras associadas ao movimento QAnon e até o chatbot Grok da própria X replicaram a desinformação. Jo Ellis tornou-se o segundo tópico mais falado na rede, com mais de 90 mil menções.
Perante a avalanche de assédio e ameaças, Ellis publicou um vídeo onde confirmava estar viva e alheia ao acidente. Em abril, decidiu avançar com uma ação judicial contra Wallace por difamação e danos à sua segurança e reputação. Mas o estrago já estava feito: a sua identidade, redes sociais e até fotografias de familiares foram divulgadas online, obrigando-a a esconder-se temporariamente.
Jo Ellis não é caso único, existe um padrão de perseguição
A história de Ellis não é isolada. A Wired identificou pelo menos 12 casos, desde 2022, em que pessoas trans foram falsamente ligadas a tiroteios ou tragédias. Nomes e imagens são sacados do anonimato e colados a crimes com base em rumores sem qualquer prova. As plataformas onde estas mentiras ganham força — como X, Facebook ou fóruns como o 4chan — funcionam como fábricas de desinformação. Pessoas políticos, influenciadoras e bots tratam de amplificar a narrativa.
Este padrão não é apenas virtual. Os dados mostram que pessoas trans têm quatro vezes mais probabilidade de serem vítimas de violência do que pessoas cis. Só entre maio de 2024 e maio de 2025 nos EUA, foram registadas 26 agressões e uma morte de pessoas trans e não conformes com o género — um aumento de 14%.
A razão para esta constante associação a violência? Segundo especialistas, trata-se de uma estratégia de desumanização para justificar políticas discriminatórias, como as ordens executivas do presidente Donald Trump que proibiram o apoio à afirmação de género, o acesso de mulheres trans a desportos femininos e a sua participação no exército.
Falsamente associada a uma tragédia, Jo Ellis tornou-se símbolo de resistência contra a desinformação e o preconceito
Antes deste incidente, Jo Ellis levava uma vida discreta. Mas o ataque forçou-a à visibilidade. Tem dado entrevistas, partilhado a sua história e assumido um papel mais ativo na defesa da sua comunidade. “Não queria ser pública, mas agora que sou, quero usar essa visibilidade”, afirmou em entrevista. “Há uma necessidade enorme de uma voz trans moderada e pragmática no debate atual.”
Ellis acredita que a direita tem explorado casos isolados — os chamados edge cases — para pintar todas as pessoas trans como perigosas ou instáveis. E num país onde poucas pessoas conhecem alguém trans na vida real, estas mentiras facilmente se tornam “verdades” aos olhos de muitas pessoas.
E em Portugal? O eco da desinformação também se faz ouvir
Apesar de Portugal ter avançado significativamente em direitos LGBTQIA+, a desinformação como arma política ou cultural também tem vindo a crescer. Um dos exemplos mais recorrentes é a circulação de conteúdos falsos sobre uma suposta “ideologia de género” imposta nas escolas, com alegações infundadas de que se está a “ensinar crianças a serem trans”. Em muitos casos, estas mensagens usam imagens descontextualizadas de cartazes escolares ou momentos pontuais de celebração da diversidade para espalhar medo e desinformação.
Também a educação sexual inclusiva tem sido alvo de manipulação, sendo retratada por alguns sectores como “doutrinação” ou “promoção de comportamentos desviantes”, quando na verdade se trata de garantir o acesso à informação, ao respeito mútuo e à segurança para todas as pessoas, independentemente da sua identidade ou orientação.
Por fim, o discurso político também não tem estado imune. Durante as campanhas para as eleições legislativas de 2024 e 2025, assistiu-se à instrumentalização de temas LGBTQIA+ para fins eleitorais, com candidaturas a sugerir a existência de uma “agenda LGBT” que ameaçaria a “família tradicional”, promovendo ideias falsas de que existem privilégios ou imposições ligadas à igualdade de direitos.
Desinformação como arma contra minorias
Estes episódios mostram que a desinformação, mesmo quando começa como boato ou provocação, pode alimentar o preconceito, a exclusão e até a violência. Tal como Jo Ellis viveu nos Estados Unidos, também em Portugal muitas pessoas LGBTQIA+ enfrentam o impacto direto das mentiras — seja na escola, no trabalho, nas redes sociais ou no espaço público.
Num tempo em que as redes sociais amplificam tudo — o bom e o perigoso — é essencial que façamos a nossa parte. Confirmar antes de partilhar, procurar fontes credíveis e recusar alimentar boatos são gestos simples, mas importantes para protegermos quem está mais vulnerável à mentira. Porque a desinformação não é apenas um erro: é uma arma que pode destruir vidas. Que a história de Jo Ellis nos lembre disso — e nos inspire a escolher a verdade.

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