
A estreia do anime O Verão em que Hikaru Morreu (Hikaru ga Shinda Natsu, no original; The Summer Hikaru Died em Portugal), na Netflix, foi um dos momentos mais aguardados por fãs de manga e terror psicológico. Baseada na obra de Mokumokuren, a história segue Yoshiki e o seu melhor amigo, Hikaru, que morre num acidente e regressa — ou melhor, é substituído — por uma entidade da floresta que imita o seu corpo, voz e memórias.
O que torna esta narrativa única não é apenas o suspense sobrenatural, mas a relação intensa e ambígua que se desenvolve entre os dois rapazes. Há secretismo, tensão e uma constante oscilação entre medo e desejo. Yoshiki sabe que o Hikaru à sua frente não é o mesmo, mas continua ligado a ele por um afeto que desafia explicações — e convenções.





O anime insinua essa dimensão queer com delicadeza. Num dos momentos, Yoshiki pergunta a Hikaru se gosta dele, ao que este responde: “Gosto sim. Gosto muito de ti.” Noutra cena, durante um momento em que Yoshiki “entra” no corpo de Hikaru pela abertura do peito, este murmura: “Nunca me tinham tocado aqui.” Mais tarde, Hikaru declara: “Ainda que soubesse, não importa. Não consigo evitar gostar de ti!”
Estas interações têm um peso simbólico. A exploração física do corpo de Hikaru, associada ao facto de este albergar um “demónio”, cria uma metáfora potente sobre o que é amar alguém fora do esperado, mesmo com a presença do perigo, do tabu e do desconhecido. A série não é apenas terror — é também uma história sobre ligação, desejo e aceitação em contextos que fogem da norma e, como consequência, com forte interpretação queer.
Tradução apaga representação LGBTQ+ em “O Verão em que Hikaru Morreu”
É neste contexto que surge a polémica: na versão espanhola da Netflix, frases carregadas de afeto foram suavizadas. Declarações como “Não consigo evitar gostar de ti”, na tradução espanhola surgem opções como “Me caes bien” — esvaziando a dimensão romântica e transformando o que é amor em mera amizade.
A tradutora responsável pela versão para a América Latina, María Victoria Rodil, defendeu-se dizendo que a sua escolha foi uma interpretação possível. Mas para quem conhece o peso destes diálogos, a diferença não é detalhe — é apagamento. Especialmente num género onde a presença queer muitas vezes é subtil, quase codificada, e onde cada palavra carrega camadas de significado.
Este caso lembra que a tradução não é um exercício mecânico. É interpretação. E escolhas que diluem o subtexto queer contribuem para a invisibilização LGBTQ+, num momento em que estes gestos simbólicos ainda são essenciais para representação e validação de quem se vê nestas histórias.
Esta decisão de “limpar” afetos altera a essência da obra. E o que se perde não é apenas umas frases: é a possibilidade de reconhecer no ecrã afetos queer que a realidade tantas vezes insiste em silenciar.
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