
Pluribus, a nova série de Vince Gilligan para a Apple TV, marca o reencontro criativo com Rhea Seehorn, que brilhou como Kim Wexler em Better Call Saul. Essa mesma intensidade volta agora em Pluribus, num registo mais íntimo e melancólico.
A série usa a ficção científica para falar de algo muito humano: o medo de perder quem somos. Seguimos Carol Sturka, sobrevivente de um vírus galáctico que funde quase toda a humanidade numa consciência coletiva. A nova sociedade é altamente eficiente, omnipresente e dedicada a agradar às poucas pessoas que não conseguiu infetar. A premissa é estranha, mas toca em temas muito reais: identidade, trauma, luto e autonomia.
Pluribus pode ser lida como um drama sobre solidão e depressão, mas também como reflexão sobre resistência e apagamento. Para muitas pessoas LGBTQIA+, estes temas ressoam de forma profunda.
Nota: O restante texto não contem spoilers per se, mas contém detalhes no desenvolvimento das personagens ao longo dos episódios até à data da sua escrita.
O passado de Carol e o peso das identidades perdidas
A série revela que Carol vive uma relação com Helen (Miriam Shor) que trabalha também como sua publicitária. Este passado surge ao longo dos episódios e revela algo essencial: houve amor, houve verdade, mas houve também tentativa forçada de apagamento.

Numa conversa, Carol revela que foi sujeita a práticas de conversão pela própria família, o que explicará a ausência da mesma na sua vida. Esse trauma deixou cicatrizes que marcam toda a sua vida emocional, mesmo quando vive com uma pessoa que a ama e a desafia profundamente.
Pluribus estabelece aqui um paralelo poderoso. Tal como o vírus tenta absorver a individualidade das pessoas, as práticas de conversão tentam apagar identidades reais. Ambas são formas de violência que esmagam autonomia, fragmentam a autoestima e rasuram a diversidade humana.
Quando o trauma reescreve a própria história
Carol é uma autora de uma saga de sucesso. No manuscrito original, o interesse amoroso da protagonista era uma mulher. No entanto, apesar de viver numa relação lésbica semi-armariada, Carol muda a personagem para homem, tornando o casal da história heterossexual aquando da publicação dos livros.
Este gesto revela a dimensão interna do armário: Não é apenas esconder-se da sociedade, é reescrever-se para sobreviver nela. E, simultaneamente, libertar-se das amarradas e da tortura da conversão promovida pela própria família em miúda.
Esta é uma estratégia comum em quem viveu rejeição ou violência: altera-se a narrativa, apaga-se o que dói, molda-se o que se mostra. Mas essa proteção, sabemo-lo bem, tem custos emocionais e psicológicos elevados e difíceis de sustentar. Carol, no seu trajeto de vida de empoderamento, autonomia e com uma relação amorosa genuína, sente-se, ainda assim, miserável.
Quando a única companhia é uma máquina

A série traz-nos paralelos entre o isolamento emocional e a tecnologia. A certa altura surge uma imagem que resume bem o desespero de Carol: o luto já é em si uma experiência profundamente solitária; mas atravessá-lo quando a única companhia com quem podes falar ser uma espécie de ChatGPT v2000, medicado com antidepressivos, absolutamente normalizado e frustrantemente apaziguado, é desesperante.
O humor usado em Pluribus é sombrio, mas certeiro. Fala da necessidade humana de respostas verdadeiras, genuínas, distintas até, não de frases suaves que evitam desconforto e confronto a todo o custo. Fala de como a nova sociedade dominada pelo hegemónico vírus exige funcionalidade imediata, mesmo quando a dor ainda está a rebentar por dentro.
A manipulação do vírus volta a marcar presença quando escolhem um ‘indivíduo de proximidade’ para Carol (Zosia) baseado na fisionomia do interesse amoroso dos seus livros, mas do género feminino.
Para quem já sofreu de apagamento emocional, esta pressão para sorrir e sermos quem não somos, sentirmos o que não sentimos soa demasiado perto, demasiado familiar.
Homenagem a Golden Girls torna-se num espelho inesperado em Pluribus

Ao fim da noite, Carol vê, sem sorrisos, a aclamada série The Golden Girls em DVD (“Sarilhos com Elas” em Portugal; “Super Gatas” no Brasil). Um dos episódios em questão chama-se “Dorothy’s New Friend” e a sua escolha é brilhante.
O episódio fala de perceções erradas, de amizades que parecem algo que não são, e tem um momento delicioso: Rose (Betty White) conta que, em St. Olaf, havia uma mulher que nunca sorria porque “nasceu sem músculos do sorriso”. Rose diz que lhe explicou que “um esgar é só um sorriso ao contrário”, e a mulher passou a fazer o pino e a acenar quando a via.
Este detalhe espelha a situação de Carol. O mundo espera que ela sorria, que aceite o novo normal, que funcione. Tal como a mulher de St. Olaf, ela recusa adaptar-se a expectativas absurdas, mesmo quando tudo dentro dela está ao contrário.
A mensagem do episódio de Golden Girls que Carol vê no seu sofá oferece um contraste necessário: humor, humanidade e falhas. Tudo aquilo que o vírus tenta apagar.
Mais do que salvar o mundo, Carol tenta salvar-se a si própria
Pluribus é ficção científica, mas também é um estudo sobre resistência. Sobre guardar a própria voz quando tudo empurra para a assimilação, para a higienização e para a padronização absolutas.
Para quem vive ou acompanha questões minoritárias como as LGBTQIA+, esta leitura torna-se ainda mais nítida. Carol não é apenas um símbolo de heroísmo feminista clássico. É alguém que tenta existir e sobreviver num mundo que lhe pede para ser outra coisa com um sorriso nos lábios. E é aí que Pluribus se torna tão relevante.
No fim, Pluribus lembra-nos que a identidade não é luxo nem detalhe: é raiz. Para muitas comunidades, é a primeira coisa que o mundo tenta controlar, corrigir ou apagar. O percurso de Carol mostra que resistir a essa pressão é um gesto vital.
Proteger quem somos, mesmo quando tudo parece pedir o contrário, torna-se ato de cuidado e de sobrevivência. A série é de ficção científica, mas ecoa lutas bem reais: ninguém deveria ter de se perder para caber num mundo que insiste em ser pequeno.
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