Jill Nalder: A poderosa mulher que inspirou ‘It’s A Sin’

Jill Nalder, que perdeu três amigos durante a pandemia do VIH/SIDA na década de 1980, inspirou uma das personagens da popular série It’s A Sin. Em entrevista à BBC ela recorda como os jovens que contraíram o vírus na época “desapareciam“.

Na década de 1980, quando Jill Nalder estudava em Londres, notou que os jovens colegas saíam e não voltavam. Iam para casa e, de certa forma, “desapareceriam“. Percebeu mais tarde que os seus colegas e amigos estavam a morrer, muitas vezes em segredo, por complicações do VIH/SIDA.

Ela estava ciente do VIH desde o início devido aos rumores da “‘gripe gay’ vinda dos Estados Unidos da América“. “Ninguém sabia de nada realmente, mas ouvimos que matava jovens gay, em forma e saudáveis“, disse.

Então começou a infiltrar-se nas nossas vidas. O primeiro caso que me lembro foi de alguém que conheci na faculdade.” Foi para casa e nem Jill nem os seus amigos não sabiam porquê. “Depois disso, soubemos que ele tinha morrido“, disse Jill, atualmente atriz em musicais do West End.

Nem sabíamos que ele tinha morrido de SIDA, eram apenas boatos. Isto tudo aconteceu muito no início. Os rapazes iam para casa e simplesmente desapareciam. Perdi três dos meus melhores amigos em 18 meses.

A sua história é a inspiração por detrás da popular série It’s A Sin, escrito pelo seu amigo Russell T Davies (Queer as Folk e Years and Years).

Jill lembra-se da vez em que o seu amigo lhe disse pela primeira vez que era seropositivo:

Disse-mo numa carta“, recordou. “Quando ele voltou para Londres, explicou-me que a sua família nunca poderia descobrir dado que não sabia que ele era gay. Eu tive que manter isso em segredo.”

Um outro amigo manteve a sua doença em segredo até seis semanas antes de morrer:

Ele provavelmente sabia que era seropositivo nos últimos quatro anos“, disse Jill. “Não contou a ninguém. Mas chegou a um ponto em que ele não podia continuar a esconder.

O VIH evolui para SIDA quando a pessoa não recebe os tratamentos devidos e nenhum eficaz estava disponível no Reino Unido até 1997. Até então, era uma sentença de morte para muitas das pessoas que contraíam o vírus.

Foi um momento devastador“, disse Jill. Ela visitou um amigo no hospital uma semana antes de ele morrer: “Ele nunca recebeu outra visita depois disso. Eu não conhecia a família dele bem o suficiente para contatá-la, mas sei que ele não teve outras pessoas a visitá-lo.

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Com o estigma que envolvia toda a luta contra o VIH/SIDA, a vida de Jill era um “campo minado de sigilo“. Ela fazia visitas hospitalares a amigos que tinham o vírus sem contar a ninguém.

Uma noite estava à espera de um amigo na porta do palco depois de um espetáculo, mas ele não apareceu. Uma hora depois ainda não havia sinal dele. Sabia que havia algo errado.

Dirigiu-se então para uma cabine telefónica perto do West End’s Palace Theatre.

Tive de ligar para vários hospitais para tentar encontrá-lo quando nem tinha um nome para dar, porque os rapazes com VIH nunca usavam os seus nomes reais quando eram internados“, disse Jill.

Levou três horas para encontrá-lo. “Ele teve uma convulsão“, contou. “O hospital não sabia porquê, provavelmente pensaram que estava bêbado.”

Algumas famílias nunca chegaram a descobrir que os seus filhos tinham morrido de SIDA.

As famílias simplesmente não estavam cientes“, acrescentou. “Pensaram que era algo como cancro. Não entendiam que a SIDA existia e que os seus filhos tinham muito medo de lhes contar“. As expectativas familiares e o sentimento homofóbico eram especialmente profundos naquela época, relembra Jill. “Os rapazes não queriam preocupar as suas mães e os pais. Eles só queriam que se orgulhassem deles e não decepcioná-los.

Jill Nalder em It’s A Sin.

Em It’s A Sin, Lydia West interpreta uma versão de Jill, chamada Jill Baxter, enquanto a própria Jill interpreta a mãe dessa mesma personagem. O programa, que pode ser visto em Portugal na HBO, já teve mais de 6,5 milhões streams.

As duas coisas com as quais mais me relaciono com a personagem da série é a procura frenética de informações sobre o vírus“, disse Jill. “Tornei-me como um dicionário de infecções relacionadas com o VIH/SIDA“.

Jill recorda também as visitas ao hospital em que, ao andar pelos corredores e ao olhar para os quartos, via em cada um deles “pessoas da minha idade a morrer com SIDA“. Recorda-se de ver as pessoas com o sarcoma de Kaposi, as marcas pretas na pele pela primeira vez. O sarcoma de Kaposi é um cancro raro causado por um vírus e é frequentemente associado ao VIH.

Essas imagens da devastação que a SIDA causa ao corpo ficarão sempre comigo“, confessa Jill.

Mas ela também se lembra dos bons momentos. No final da década de 1980, ajudou a criar uma instituição de caridade chamada West End Cares que arrecadou mais de £ 2 milhões nos seus primeiros anos.

Fizemos noites de cabaré em pubs de West End e até fizemos apresentações noturnas de shows completos no West End. Foi muito divertido!” Agora chamada de Theatre MAD – que significa Make a Difference [Faz a Diferença] – a instituição arrecadou cerca de £14 milhões.

Jill Nalder e a sua luta contra o estigma estiveram em discussão no Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️‍🌈

Muita coisa mudou desde que o primeiro caso de VIH foi registrado no Reino Unido em 1981. Hoje, as pessoas que vivem com o VIH têm vidas longas e saudáveis com a ajuda da medicação apropriada. Podem também alcançar um estado “indetectável”, o que significa que não podem transmitir o vírus. O medicamento prescrito PrEP – profilaxia pré-exposição – também impede que as pessoas contraiam o VIH.

Chegámos tão longe desde aqueles dias“, disse Jill. “Mas o que vemos aqui no Reino Unido não é um reflexo de toda a pandemia, ainda existem crianças orfãs do VIH/SIDA em África e países que ainda criminalizam a homossexualidade, mas eu acho que neste país pensamos que está tudo bem, que superámos isso e não pensamos na realidade global há muito tempo.

Jill acredita que It’s A Sin fará com que as pessoas percebam como os tempos mudaram e diz que a série “é para os rapazes corajosos que perdemos“, pois foram eles os “pioneiros que lutaram na linha de frente. E nunca devemos esquecê-los.


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