“Quarta, dia 30 de janeiro de 2019 fica marcado como o dia em que ia fazer um exame que o ginecologista pediu, mas não chegou a ser feito por nunca ter tido relações“.
Assim começa mais um dos meus textos, escrevo esporadicamente sobre acontecimentos do dia-a-dia. (…) “E queria ligar-te, contar-te o que se passou. Rir porque entre tantas coisas caricatas que me tem acontecido no médico, esta foi só mais uma. Queria rir que nem uma tonta. E depois talvez chorasse. Porque há um motivo muito profundo para nunca me ter envolvido dessa forma com ninguém.”
Serve o presente testemunho para falar um pouco acerca do que aconteceu comigo e, infelizmente, acredito que não sou caso único. É verdade, sendo uma jovem adulta perto dos 30 anos nunca me envolvi sexualmente com ninguém embora já tenha tido algumas relações amorosas. Mas vamos ao início.
Era criança, devia ter cerca de 9 ou 10 anos quando fui por diversas vezes abusada. Não violada, acho que são coisas diferentes. A criatura que me fez isso, custa-me chamar-lhe pessoa, fazia parte do meu círculo familiar. Não sei ao certo, mas devia ter uns 60-70 anos. Tocava-me. Acariciava-me as partes íntimas e depois tocava-se. Por diversas vezes isto se repetiu durante algum tempo. Passado um ano ou dois ganhei coragem e contei à minha mãe. Demasiado tarde, o mal já estava feito e alguns aspetos já nunca seriam os mesmos. O caso “resolveu-se” entre portas.
Apesar disso sempre fui uma criança muito alegre, cheia de energia e guardo recordações muito boas da minha infância. Mas à medida que ia crescendo e o tempo passando comecei a perceber que não era como as outras meninas. Embora andasse maioritariamente com os rapazes, e regra geral era vista como mais um, não aceitava bem se algum tentava ser mais que meu amigo. À medida que ia crescendo e ganhando formas de mulher, diversas foram as vezes em que ouvi comentários e piropos. Alguns até achava piada, sem segundas intenções, diga-se de passagem, mas regra geral sentia-me incomodada. Nem sequer as abordagens de cariz mais romântico eram recebidas positivamente da minha parte. Era como se estivessem a invadir o meu espaço, e por vezes tratavam-se de situações completamente normais como um convite para ir beber um copo. Entretanto atingi legalmente a idade adulta e entrei na faculdade onde tive uma amizade colorida com um rapaz. Não era capaz de equacionar envolver-me com ele, acabámos por deixar de falar. Aliás, começava a ter dúvidas que alguma vez me iria querer envolver com um homem. Sempre me senti atraída por pessoas, independentemente do sexo, mas os homens de certa forma começavam a incomodar-me. Sobretudo pela sua insistência evasiva, mesmo com um explícito não da minha parte continuavam a tentar ter algo comigo. Passado algum tempo, apaixonei-me por uma rapariga. E embora gostasse verdadeiramente dela, sempre que ela era um pouco mais atrevida eu recuava. Acabámos por seguir cada uma a sua vida, nunca lhe cheguei a contar que a minha relutância era fruto de uma fragilidade passada.
Voltemos ao episódio de hoje. Não me senti incomodada por não ter de fazer o exame, na verdade até me senti bastante aliviada porque não o queria mesmo fazer. Nem o facto de contar a um estranho que sou virgem, é para mim uma verdade adquirida, mas vi o espanto nos olhos do médico. “Já teve relações? Não, respondi. Não? Não”. O que me afetou verdadeiramente e a um nível que julguei impensável foi quando comecei a pensar no motivo da minha resposta. “Não, nunca me relacionei com ninguém. Sim, sou virgem”. Costumo dizer que sou virgem por opção, na verdade já o poderia ter deixado de ser há bastante tempo, não faltaram ocasiões. Mas há uma mágoa que me prende. Parece que me impede de me entregar a alguém. O sexo não me diz nada, é algo que pode ser feito entre duas pessoas quaisquer, mas o amor, ah o amor é diferente. É preciso que exista uma ligação especial entre duas pessoas, acredito que ainda hei-de conhecer a pessoa com quem vou sentir essa ligação. A quem vou mostrar o meu lado lunar e revelar os meus segredos, alguém com quem não preciso de ter reservas.
Escrevo este texto numa semana em que a SIC exibiu uma reportagem sobre duas mulheres que foram violadas. Se não estou em erro, passou domingo no jornal da noite, convido-vos a verem. Dito isto, agora vamos ao propósito deste texto. Porque decidi fazê-lo e o que pretendo com ele. Em primeiro lugar o que despoletou uma ação da minha parte foi sem dúvida a minha ida ao médico, embora já andasse a pensar em escrever sobre este tema há um tempo por uma razão ou por outra acabava por não o fazer. Hoje senti quase uma necessidade vital em partilhar o que me aconteceu. Em segundo, e a par do testemunho dado na entrevista da SIC, os abusos, violações são crimes que deixam marcas para o resto da vida. Marcas que não se vê, mas que se sente. E mudam para sempre as pessoas que delas são vítimas. Houve uma questão que me revoltou particularmente, a pena para este tipo de crimes. No máximo 10 anos para quem destrói a vida a outrem simplesmente porque não é capaz de controlar os seus desejos sexuais? Com que direito? Não estará na altura de rever o código penal? Além disso, existe ainda uma outra questão, talvez essa esteja mesmo no cerne da questão. Estigma social. Preconceito. “Se não vestisses essa roupa, mas assim estavas mesmo a pedi-las”. Este é apenas um exemplo das atrocidades e comentários hediondos que as vítimas ouvem. Ou então, melhor ainda “o que é que fizeste?” Claro, porque toda a gente sabe que a vítima de uma forma ou de outra estava mesmo a pôr-se a jeito. É preciso paciência. Tempo e maturidade também ajudam a lidar com os acontecimentos de outra forma, entre as quais a auto culpabilização. Que é uma idiotice na verdade, mas que acontece, atrevo-me a dizer, sempre. Que tal começarmos a ser mais compreensivos e ter algo que tanta falta faz nos dias de hoje, empatia pelo próximo. Não é preciso conhecer, simpatizar, gostar, nada, só preciso de ter a capacidade de me colocar na posição do outro.
Para rematar, gostava de deixar uma mensagem a quem infelizmente sabe o que é passar por uma situação destas. Não estás sozinh@. Não há nada de errado contigo. Mereces ser feliz. Nunca deixes de ser quem és.
E porque não estamos mesmo sozinh@s temos de nos fazer valer daquelas e daqueles que nos querem ajudar. Fica aqui então uma lista dos sites das associações em Portugal que podem mudar a nossa vida:
APAV – Associação Apoio à Vítima – https://apav.pt/
AMCV -Associação de Mulheres Contra a Violência – http://www.amcv.org.pt
Quebrar o Silêncio – https://quebrarosilencio.pt