We’re Here: o Queer Eye que realmente importa

Os reality-shows parece que já deram o que tinham a dar. E a realidade (viram o que fiz aqui?) é que não surge nada de verdadeiramente novo e a apostar numa fórmula completamente distinta. Tanto que passadas umas temporadas extinguem-se ou perdem a sua frescura inicial. O reboot de «Queer Eye», da Netflix, trouxe uma nova era na visibilidade de pessoas LGBTI na era do streaming, muito na senda do que RuPaul já estava a fazer anos e anos antes dentro do género. E se colocou os seus “heróis” à frente e trouxe uma grande diversidade ao programa em que se saudava a inclusão, também é verdade que o foco do programa não eram as pessoas queer marginalizadas que precisavam de encontrar uma voz. Salvo as exceções dos episódios que em elas eram focadas, que são magníficos, muitos deles. Mas, tirando essas variações, muita vez me incomodei a ver aqueles cinco homens cis gay ¬— até o padrãozinho gostoso mas chato do Antoni e com a excepção à regra do JVN — a tornarem-se um pouco tokens da televisão normativa.

«We’re Here», da HBO, tem um propósito completamente diferente. Se «Queer Eye» se focava no indivíduo e na sua transformação, física e psicológica, «We’re Here» tem o objetivo de encontrar ou criar e fortalecer comunidades queer em pequenas cidades rurais dos Estados Unidos da América. Cada episódio aborda 3 pessoas ou grupos de pessoas LGBTI ou aliadas de forma a perceber o que as está a retrair nos sítios onde vivem e a fazê-las perceber que encontrar e celebrar a sua tribo é a coisa mais fundamental de qualquer pessoa que venha de uma minoria. E quem melhor para fazer isso para a comunidade LGBTI que três drag queens, velhas guardiãs e precursoras da nossa história coletiva. Temos, por isso, Eureka O’Hara, Shangela e Bob The Drag Queen, todas trazidas à fama por «RuPaul’s Drag Race», mas que se distinguiram depois do programa por mérito próprio.

E, apesar de não existir nenhuma mentora trans, nenhuma delas está dentro do binarismo de género que muitas vezes vemos na representação de pessoas LGBTI. E batalham ferozmente contra preconceitos de género e masculinidade. Aliás, viver na pele de uma drag queen na América rural ainda é um sítio pouco seguro de se estar, como se pode observar quando chegam a estas pequenas cidades. Esgares, olhares de repúdio, discriminação indireta e direta, vemos tudo isso. Porém, não é nelas que assentam os episódios, mas sim nas pessoas que escolhem abrirem-se um pouco mais ao mundo, descobrirem-se e, acima de tudo, a uma comunidade inteira que as apoia no processo. Temos pessoas trans, não binárias, gays, pansexuais, heterossexuais, aliadas, mães, filhas, avós, netos. Uma das histórias mais comoventes surge no segundo episódio, quando vemos uma drag queen local e sem grande popularidade num circuito que não existe a professar o seu amor eterno ao avô, um homem nos seus 80 anos que desde cedo apoiou o neto nas suas aventuras de descoberta identitária. Quando sai enquanto drag queen para os espetáculos, muitas vezes em trajes menores e provocadores, diz sempre que está linda e apoia e presencia tudo o que ela faz. Este amor entre duas gerações salvou duas pessoas.

We’re Here esteve em discussão no Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️‍🌈

Mas nem só do amor da família de sangue se faz uma comunidade. E é o que acontece também com um casal no mesmo episódio, constituído por um jovem homem trans e uma jovem mulher cis. Criados ambos na fé mormon, perderam o sentido de comunidade que tinham antes e isolaram-se depois do casamento, mais ou menos desconsiderado pelas respetivas famílias. E se estas foram aos poucos foram aceitando a verdade do casal, ele não tinha uma base de apoio comunitária. Shangela diz algo que ainda me ressoa agora: “Eles (a família) podem vir a mudar de ideias; e podem também não mudar. Tens de viver a tua vida para ti e mais ninguém”. Conselho simples, mas que tem um eco gigante.

No final de cada episódio temos um espetáculo drag em que as estrelas são as pessoas que protagonizaram o episódio. E se o drag obriga a revelar uma verdade interna que potencia a individualidade de cada pessoa, a realidade (viram? outra vez) é que o verdadeiramente importa aqui é o fortalecer da pessoa individual no encontro de pares, na perceção que existe uma comunidade de pessoas como ele ou ela, que a irão apoiar nos momentos maus e amparar as quedas provocadas pelas rasteiras do Mundo. E assim mudá-lo. Pouco a pouco. «We’re Here» pode ter passado um pouco despercebido na HBO Portugal, mas não deve ser ignorado. Encontremos estas nossas tribos, elas são aquilo que mais valioso temos enquanto pessoas queer.

Nota: Texto revisto pela Ana Teresa.


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