
A palavra tolerância persegue-me há anos. É usada em vários contextos e habitualmente com uma conotação benigna e desejável, mas sempre me pareceu que com consequências perniciosas. A 16 de Novembro celebra-se mesmo o dia internacional da tolerância e a ONU até aprovou uma declaração de princípios da tolerância em 1995 que tem uma relação directa com a população LGBTIA+. Pareceu-me assim adequado explorar o conceito e as suas implicações.
Comecemos pela palavra.
O dicionário priberam define assim tolerância:

E porque estamos a falar de um uso internacional do termo, vale a pena ver a definição de tolerance no Lexico.com:

A ONU diz que a tolerância é “o respeito, a aceitação e o apreço pela diversidade em todos os seus âmbitos. Não deve ser considerada como uma concessão, mas sim um reconhecimento dos direitos humanos universais e das liberdades fundamentais de cada pessoa. Além disso, ninguém precisa de renunciar às suas opiniões ou convicções para praticá-la – todos são livres, mas devem aceitar, igualmente, a liberdade do próximo.”
Como se percebe pelas definições, a palavra permite interpretações de uma latitude larga demais para uma mensagem que se quer asseguradora de direitos básicos como a ONU pretendia na sua declaração ou como acaba por ser usada no discurso politico. “Condescendência para com o que não se pode impedir”? “Ability to tolerate the existence of behaviour one disagrees with”? O que transmitimos – nós LGBTIA+, aliados ou legisladores –, ao usar a palavra tolerância, é que faz sentido as pessoas continuarem a olhar para nós com o desprezo do costume desde que passem a não agir voluntariamente com base nesse desprezo. Fazemos uma censura ao comportamento ao mesmo tempo que aceitamos uma certa inevitabilidade ou normalidade do ódio e da ignorância. A ONU na sua proposta tenta claramente fugir a estes problemas negando a ideia de concessão, mas ainda assim acaba com o escape de dizer que as pessoas não têm que renunciar às suas convicções.
A história da utilização do termo vem, aliás, muito ligada à tolerância religiosa num contexto em que uma religião hegemónica teve que lidar com cisões e práticas contraditórias. Uma das fontes mais influentes neste sentido é John Locke mas mesmo ele não defendeu a tolerância para mais do que a liberdade na fé – nem sequer total liberdade de pensamento – e nessa apenas a tolerância das várias formas de acreditar no deus cristão, sendo desde logo crítico do ateísmo. Na linha do que é dito acima, já nesta altura a tolerância era uma forma de luta pela sobrevivência de pessoas que continuavam a ser desprezadas mas que não tinham escolha porque a fé não se decide mudar. Estaríamos mais descansados com Voltaire, um lutador contra o fanatismo que defendeu a tolerância como o melhor caminho para uma sociedade partilhada, mas ainda assim pareceu apelar a uma relativa moderação de todas as partes na contenda – particularmente a religiosa – algo que nos pareceria estranho quando a tolerância que se discute neste texto claramente não é entre partes iguais mas entre preconceitos e existências. Ainda assim, é sabido que pelo menos Voltaire praticou a sua apregoada tolerância mesmo no campo das relações pessoais, tendo sido amigo elogioso e conviva de conhecidos homossexuais, algo que viria a ser muito raro mesmo entre os chamados intelectuais e séculos mais tarde. O iluminismo, a era da razão, a própria Respublica literaria conseguiu pugnar pela tolerância mais por motivos de claro pragmatismo – se não podes mudar os erros dos outros, pelo menos arranja uma plataforma comum para aquilo em que possam aprender em conjunto para a sociedade progredir – do que por reconhecimento ético do direito fundamental à pertença ou participação – veja-se a história das mulheres nesta altura para se ilustrar inquestionavelmente esta argumentação.
Apesar disto, a ideia mais lata de tolerância que tem sido usada desde os 90s permite que muitos se aproveitem da sua imagem como palavra identificadora dos defensores das liberdades fundamentais para limpar a sua própria imagem ou para falsificar um papel que nem têm nem pretendem ter. Permite também diminuir – pelo menos aparentemente – a clivagem entre os grupos e fazer uma ponte em vez de inimigos ou alvos. Por outro lado, ajuda a definir um limite demasiado baixo ao que se exige à sociedade que queremos construir e aos indivíduos que a ela pertencem e pertencerão. Aliás, acaba-se por vezes a substituir lutas pela igualdade ou justiça ou pelo menos a disfarçá-las com a apologia, a aparência e a promoção de tolerância.
Ouvimos tantas vezes apregoar a tolerância, elogiar pela tolerância, exigir tolerância, que a palavra se torna a bandeira. Consegue-se assim ter consciência tranquila porque não se odeia as lésbicas, porque não se detesta os ciganos, porque se permite a construção da mesquita. Consegue-se de cara lavada mostrar uma superioridade moral porque se tolera estas e outras pessoas que são diferentes do próprio, que se vê como normal. É como se fosse suficiente. Se sou tolerante já sou um fenómeno, super progressista, amem-me, votem-me, sigam-me e esqueçam essa parte que temos mais do que falar.
Por outro lado, é essencial reconhecer que a mudança de opinião não deriva apenas de simples conhecimento e argumentação. Os preconceitos fazem parte da estrutura mental da pessoa e influenciam a sua perspetiva sobre cada questão. Muitas vezes a racionalidade ajuda a justificar aquilo em que já se acredita em vez de ajudar a mudar. O conhecimento atual sobre o pensamento, ideologias, opiniões e racionalidade, dá-nos um contexto para perceber a aparente resistência a um progresso que, aos nossos olhos, parece tão óbvio. Será que deveríamos ser nós a “tolerar” os que ficam afogados nas suas visões empedernidas? Estaremos condenados à tolerância do iluminismo, a dobrar as nossas próprias exigências para nos aproximar do outro lado e esperar um futuro melhor que parece nunca mais se alcançar?
Claro que no passado a tolerância foi uma bandeira útil. Não era fácil fazer uma transição do desprezo, ódio, agressão, tabu para com a população LGBTIA+ para algo mais exigente do que tolerar a existência. A lei, de resto, não pode fazer mais do que intervir sobre o comportamento e portanto ao nível do que se pode dizer tolerar. Mas e o discurso? Será que chegou agora o tempo de podermos mudar as palavras? Será que já podemos dizer abertamente que a nossa existência não tem um valor inferior e não implica qualquer tolerância porque não é aceitável que sejamos algo mau, problemático, incómodo? Será que podemos deixar o ónus e a critica totalmente sobre quem ainda nos vê e pensa como tal? Será que podemos alcançar agora esse nível de igualdade ou será impossível termos uma geração em que o preconceito seja o reduto de uma ignorância minoritária e inconsequente?
A 16 de Novembro de 2018 celebraram-se os 18 anos da declaração da ONU. Já amadureceu que chegue. Em 2021 a minha medalha vai para todos os LGBTIA+ que, esses sim, toleram há demasiados anos uma sociedade em que as pessoas os odeiam sem motivo e rara consequência. Toleram no sentido de aguentar e ter que conviver, porque nem é tranquilo, nem é com respeito, nem é sem consequências para a saúde. Sabemos bem qual foi a parte do conceito que tem sobrado para nós.
O esboço deste texto está pendente há anos e foi a “recente” discussão sobre as palavras de 2010 do atual presidente do tribunal constitucional que me motivou a terminá-lo. O que João Caupers disse na altura é um exemplo prático dos perigos que expliquei acima. Ainda há gente, em Portugal e em pleno séc. XXI, que se sente justificada em discutir os direitos que “dá” aos que magnanimamente tolera e em criticar o acesso que estes têm ao mediatismo por temer a “promoção” de ideias ou comportamentos minoritários, só porque se adorna as declarações com manifestações de tolerância e contra o preconceito.
Nada mais apropriado que lembrar isto no chamado mês do orgulho.
A tolerância não é algo mau, entenda-se, há quem diga até que é o mínimo denominador comum de uma sociedade livre e multicultural. Mas, se isto é o mínimo, temos mesmo que escrutinar melhor as fachadas e, por vezes, escolher outras palavras e outras bitolas para definir o que é correto, adequado, bom. Saibamos fazê-lo, juntxs.

Ep.167 – Tina Turner, Mariana Mortágua, Saúde Feminina e Não-Binarismo no México – Dar Voz a esQrever: Notícias, Cultura e Opinião LGBTI 🎙🏳️🌈
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