Baby Reindeer e o impacto na discussão sobre abuso sexual contra homens

“Baby Reindeer” é uma série da Netflix que adapta uma peça aclamada do ator e comediante escocês Richard Gadd que aborda violência e abuso sexual. Esta é uma história baseada em eventos reais e centrada em Donny, uma versão ficcionalizada de Gadd, cuja vida começa a desmoronar após tornar-se alvo de Martha (Jessica Gunning). Ela é uma stalker que o apelida de “Baby Reindeer” após um encontro casual num bar onde ele trabalha. A mini-série, de 7 episódios, explora a profundidade e complexidade do trauma associado à perseguição, violência e abuso sexual contra homens.

A série destaca-se por abordar a vitimização sexual masculina, um tema muitas vezes marginalizado nas discussões sobre agressão sexual que tendem a priorizar a perspectiva feminina. Estatísticas indicam que, efetivamente, as mulheres são quase três vezes mais suscetíveis a sofrerem agressões sexuais em comparação aos homens. Contudo, esta realidade torna os homens vítimas de violência e abuso sexual quase “invisíveis”.

Baby Reindeer apresenta uma viagem ao abuso sexual marcada por mentiras, fugas e muita dor

A omnipresente Martha, que passa os dias junto a Donny no bar em que trabalha e à noite a enviar-lhe emails, obriga-o a questionar-se o porquê de estar ele a submeter-se à sua presença e discurso impróprio. Anos antes, depois de entrar numa espiral de falhanços como comediante, Donny é violado pelo seu “mentor”, Darrien (Tom Goodman-Hill). A partir desse ponto, enfrenta uma série de comportamentos autodestrutivos e uma luta intensa com a sua identidade sexual e autoestima.

No seu percurso solitário, Donny procura lidar com o trauma, mas encontra dificuldades adicionais ao envolver-se com Teri (Nava Mau), uma mulher trans cuja relação tenta ele esconder. Teri, uma deslumbrante psicóloga que, embora lhe dê tempo e espaço, recusa-se a esconder-se e a sentir vergonha. Donny sabe que ela tem razão e, ainda assim, não consegue impedir-se de a afastar e magoar, mesmo quando a vê como o “amor da sua vida“.

As ações do comediante falhado, marcadas por mentiras e fuga, refletem o impacto psicológico do abuso e a pressão para aderir às normas tradicionais de masculinidade e de aceitação, intra e interpessoal. O que significa, afinal, a sua nova busca por experiências sexuais com homens e mulheres, cis e trans? Em que contexto e com que influência surge o seu abuso sexual? Estão interligados? Sabemos que não, a orientação sexual (Donny diz-se posteriormente algures entre bissexual e pansexual) e o abuso sexual não estão ligados.

Sobreviventes de violência e abuso sexual são constantemente relembrados e questionados sobre os porquês e os comos do que lhes aconteceu e no que se se tornaram. A educação sexual, além dos benefícios que traz à saúde sexual e reprodutiva, é também uma ferramenta essencial de prevenção à violência e aos abusos sexuais, empoderando crianças e jovens.

De vítima a sobrevivente de abuso sexual

“Baby Reindeer” também critica a forma como as vítimas de abuso sexual são tratadas pela polícia. São vários os mitos sobre violação que, frequentemente, culpabilizam as próprias vítimas e questionam as suas ações, em vez de se focarem no abuso sofrido. Neste contexto, os homens são tendencialmente mais desacreditados e encontram maior resistência, muitas vezes interna, pela pressão cultural e de ideias de masculinidade. Também por isto, as vítimas levam frequentemente anos ou mesmo décadas até falarem sobre a violência ou abuso sexual que sofreram. Para uma melhor resposta a estes casos, é pois essencial a formação de equipas policiais, médicas, escolares e de saúde mental. Que é o mesmo que dizer: há que falar sobre o assunto que é precisamente o que a série se propõe fazer.

“Baby Reindeer” ganhou popularidade muito por culpa do orgânico boca-a-boca. Rapidamente tornou-se símbolo e lembrete da necessidade de histórias inclusivas e realistas sobre violência sexual, independentemente do género e sexualidade das vítimas e de quem abusa.

O silêncio é aqui o maior inimigo e importa também em séries como “Baby Reindeer”, ainda para mais criada na primeira pessoa, quebrá-lo para também assim quebrar o ciclo de dor e solidão. Afinal de contas, Donny sempre mereceu rir-se da própria gargalhada.