Como se constrói uma identidade sonora? Discussão sobre o vídeo musical BAZA, de Blaya

“Baza” é uma música contagiante. Para os fãs dos Buraka Som Sistema, a antiga banda de Blaya, é uma ótima forma de regressar ao seu universo sonoro. Não sou apenas eu que o digo, várias pessoas comentam o mesmo no canal de Youtube da cantora. O vídeo tem realização de Emerson Ferreira e Micaela Miranda, a música foi escrita por Blaya, Stego e Mr. Marley. Devo confessar que, na minha relação musical com Blaya, as músicas acabam por ser uma de duas coisas: um tiro em cheio ou completamente ao lado (ups, desculpa Blaya!). Esta é fantástica, simples, memorável, cantada de forma bem articulada e em sintonia com o ritmo, e o vídeo só acrescenta qualidade à que a música já tinha.

“Baza” é uma palavra informal da língua portuguesa. O movimento lógico, diria eu, era fazermos uma associação simples: se pertence ao léxico vulgar, ordinário (e por este termo refiro-me à aceção do teórico Raymond Williams quando escrevia que “culture is ordinary”), e o hip hop é um movimento estético-musical que surge em espaços quotidianos, então, “baza” é uma palavra adequada a este género. Aliás, desafio-vos a escrever no motor de busca da google as palavras “música” e “baza”. Sabem o que vão encontrar? Muitas músicas de hip hop com a mesma palavra no título ou na letra, parece que é uma coisa recorrente. Mas talvez isto seja um raciocínio incoerente, tipo falácia, daquelas coisas que apenas têm a aparência de verdade. Ou melhor, pode até ter sido essa a intenção dos músicos têm usado a palavra no hip hop, incluindo a Blaya, mas não quero entrar por aí (as motivações ficam com eles, o meu exercício de pensamento é outro). Vamos adotar o método dialético (sim, é filosofia, mas venham comigo porque não custa nada) e focar-nos na contradição de ideias. Então e se “baza” tiver um sentido na música e outro no vídeo? Talvez exista uma certa ironia em que se diz por um lado, o contrário do que se quer dar a entender, por outro.

Se baza vem do verbo bazar, que é sair de forma apressada, o seu contrário é entrar, e é exatamente assim que o vídeo começa. As personagens descem para um parque de estacionamento e, com um sinal no portão, os dois seguranças, João Reis e Conan Osíris, concedem-lhes passagem. E o que acontece lá dentro? Mais um jogo de contradições. Num cadeirão ao fundo, Blaya canta (ou melhor, comenta de uma forma algo condescendente) que há mulheres que gastam o dinheiro que não têm, e que é de outros, e homens casados que têm amantes. Agora pergunto-me: o que é que isso tem a ver com a imagem? O que vejo são vários corpos, uns racializados, outros sexualizados, que dançam uns com os outros. Quanto às mulheres que roubam e aos homens adúlteros, nem vê-los! (Acho eu, talvez até existam pessoas assim no elenco, mas isso não importa). Aqui talvez o teor da letra tenha bazado, se me permitem… No seu lugar, em alternativa, ficaram outros panoramas.

O vídeo tem o mérito de deslocar a nossa atenção para os outros artistas que atuam com Blaya. Favela Lacroix caminha pelo centro dos bailarinos e dá a entrada, com umas palmas sincronizadas com a música, ao início do verso de Blaya. Mais tarde, Conan Osíris e João Reis também (re)agem em conformidade com o som, nos gestos da palma da mão que estão a representar a hora de bazar. Pergunto-me se Blaya não terá escolhido a palavra pela sua constituição lexical. “Baza” são duas sílabas, ditas quase de igual intensidade, e se repararmos ela usa-a ritmicamente no final das frases. Se a melodia dá início a um percurso, “baza” assinala o final (lá está, melodia, está na hora de bazares!). Ok, brincadeiras de lado. Talvez a força da palavra não esteja na sua dimensão poética, mas antes fonética, ao que soa, e como esta é canalizada de forma eficaz e perspicaz pela cantora e os outros produtores musicais. 

Mas vamos ao ponto-central do vídeo: as influências culturais. Blaya canta num sofá e depois encostada à grade, ela é quase uma MC, a mestre de cerimónias que na cultura hip hop dá a entrada ao mesmo tempo que os outros dançam. Só que aqui, verifica-se uma associação também às músicas afroamericana e latino-americana. Poderão estar aqui algumas matizes africana? Talvez. E o que dizer da diversidade de corpos e os gestos de vogue? Provavelmente mais reminiscências da ballroom das culturas queer (nos últimos tempos a cultura popular parece estar cheia delas). Nestas trajetórias até ao hip hop, às culturas africanas e às formas queer, faz-me questionar o que é a sua confluência num mesmo espaço. Bazar não é ir embora, bazar não é sair. Bazar é o seu contrário, é entrar, aderir, celebrar estas culturas que para muitos continuam marginalizadas. 

O que é fantástico nesta cinematografia, é a câmara acompanhar-nos na viagem aos encontros clandestinos na garagem. Um dos momentos mais interessantes é no início, com a câmara a levar-nos por um túnel feito pelos dançarinos, frente a frente desafiando-se. À medida que a câmara passa, estes afastam-se, não sem antes desafiarem-se uns aos outros. Parece que entramos na cena, que somos o público que vê estes adversários que lutam pela melhor coreografia ao som da música de Blaya que os observa como um dos membros do júri. Mas a cantora dá também entradas. Por exemplo, ela canta “Oh miúda toma juízo” e é um dos corpos femininos que nos é apresentado. Não acredito que seja sobre ela que Blaya canta, não obstante é um ponto de sincronização curioso. 

Um dos jogos entre som e imagem que os editores de vídeo mais gostam de fazer é com base no ritmo e na velocidade. Se tivermos atenção, reparamos que o vídeo é energético quando a música assim o pede, e mais lento em outras situações. Na oscilação de dinâmica, esta prende a nossa atenção sem ser demasiado exigente ou cansativo para o olhar. Um prémio a quem decidiu que a câmara podia estar quase imóvel para podermos ver as coreografias que merecem a nossa atenção. É sempre agradável quando se dá mérito ao esforço e dedicação dos dançarinos, ao invés de aderirmos à moda das sequências filmadas com o síndrome do género de ação em que tudo explode e não se vê nada (também, nesses não há nada para ver na maioria das vezes…). 

Talvez seja bom acabar com uma menção ao trabalho do sociólogo da música Howard Becker. Nos seus trabalhos, fala-nos muito das convenções, que são formas padronizadas de fazer as coisas, reconhecidas por todos num determinado contexto, quase como uma linha de montagem em que cada um sabe o que faz e só a coordenação é que nos leva à obra final. Talvez seja isso o que é Baza, um mote de convenções. Convenções de que há várias culturas musicais que são trazidas para um mesmo espaço. Convenção que é feita em colaboração, em que todos os participantes sabem o que fazem, uns dão entrada à dança, outros saem quando o seu tempo acabou. O que o vídeo nos mostra é que todos têm um papel, há ordens, diálogos, planos de foco nuns e noutros, uns que dançam, outros que observam. Tudo é uma demonstração de dinâmicas sociais ricas e complexas: vários corpos, uns mais ou menos normativos, porventura queer, seguramente racializados. Eu gosto, e para os que não gostam Blaya tem a resposta: “Tu tens que bazar já”.

Por André Malhado

Musicólogo, músico e comentador cultural.

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