O que é o casting transfake e qual o seu impacto na representação trans?

Jared Leto, ator cis, venceu um Oscar de melhor ator pela sua prestação de uma personagem trans em Dallas Buyers Club.

Transfake é um termo que remete para a representação de uma personagem trans por artista cis que promove estereótipos e a invisibilidade das próprias pessoas trans. O termo transfake faz referência à expressão blackface, uma prática racista na qual pessoas artistas brancas pintavam a cara para desempenhar personagens não brancas.

Esta é uma prática recorrente que tem sido denunciada ao longo dos anos. Em 2022, a peça “Eu sou a minha própria mulher” foi criticada quando, ao contar a história de Charlotte von Mahlsdorf, uma pessoa trans que viveu sob o regime nazi, o papel foi interpretado por Marco D’Almeida, um ator cis.

“O casting transfake nega os nossos mundos internos, perspetivas, narrativas pessoais e a nossa própria luta”

Surge agora uma nova peça que segue a mesma lógica: “Tudo Sobre A Minha Mãe”, de Daniel Gorjão. Pode ver-se num novo e crítico manifesto que “na peça o papel de Agrado, uma trabalhadora do sexo trans, é interpretado por uma atriz trans travesti brasileira, Gaya de Medeiros. Paralelamente, no elenco está também o ator André Patrício, que interpreta o papel de outra mulher trans, a personagem Lola”.

O manifesto considera que “um ator cis que desempenha um papel trans no mesmo espetáculo que uma pessoa trans desempenha um papel trans é particularmente perverso”, uma vez que “procura recuperar e legitimar a prática do casting transfake”. Esta é uma dupla violência, “tanto para a atriz trans dentro da peça como para a comunidade trans.”

O termo transfake foi introduzido em 2016 com o lançamento do “Manifesto Representatividade Trans Já” no Brasil pelas contribuições de Renata Carvalho e MONART – Movimento Nacional Artistas Trans, explica o manifesto. Esta é uma prática que acontece em diversos meios artísticos como o teatro, o cinema e as artes performativas, bem como no meio académico.

O casting transfake, prossegue o manifesto apresentado no canal de Fado Bicha, da autoria de Dusty Whistles, e subscrito por Lila Tiago, Luan Okun e Ary Zara, “ridiculariza as pessoas trans com a suposição, mesmo que não intencional, de que não somos mais do que uma série de adereços amovíveis numa pessoa cis confusa”.

Nas suas palavras, “não há nada de errado com o drag, que tem o seu lugar e a sua importância na revolta queer”, mas, consideram que “colocar uma pessoa cis em drag para desempenhar o papel de uma pessoa trans é um escárnio da experiência trans”.

O manifesto exige que o Teatro do Vão, o Teatro São Luiz e o Teatro Municipal do Porto “ouçam as comunidades que prejudicam e tomem medidas significativas contra a transfobia nas suas produções”.

Atualização 20 de janeiro:

No espetáculo da noite de ontem foi realizada uma ação direta no Teatro Municipal S. Luiz. Assim que o ator André Patrício entra, em transfake, ocupa o palco Keyla Brasil, atriz e performer travesti brasileira que discursou.

Segundo Fado Bicha, “houve mais ativistas trans na plateia, para defenderam a Keyla, caso fosse necessário, e no balcão, a pendurar cartazes com mensagens.”

O Teatro São Luiz já reagiu com a declaração:
“No seguimento de vários atos de contestação pela representação de uma personagem trans por um ator cis e pela criação de condições de acesso e representatividade para pessoas trans, o Teatro do Vão decidiu alterar o elenco do espetáculo TUDO SOBRE A MINHA MÃE, texto de Samuel Adamson, a partir do filme de Pedro Almodóvar, com encenação de Daniel Gorjão, integrando a atriz trans Maria João Vaz na interpretação da personagem Lola. Esta possibilidade torna-se agora viável pelo empenho do Teatro São Luiz e do Teatro Municipal do Porto.”

“Quando vemos estas mulheres fora do ecrã como mulheres, isso desfaz a ideia de que são homens mascarados“

Mya Taylor no papel de Alexandra no aclamado filme Tangerine.

Este manifesto toca num ponto essencial para perceber o problema: a diferença como são vistas fora do palco ou ecrãs. “O público encara as mulheres trans como homens maquilhados com cabelo bonito e isso é reforçado sempre que vemos fora do ecrã um homem que fez de mulher trans”, disse Jen Richards, atriz e autora trans, no documentário Disclosure da Netflix.

Richards conta que houve inclusive casos em que mulheres trans foram equacionadas para papéis de mulher, mas acharam-nas “demasiado reais” para o papel de uma mulher trans, tendo sido escolhido um homem cis para o desempenhar. É assim perpetuada a ideia no subconsciente social de que as mulheres trans não são mulheres, mas homens vestidos de mulher e vice-versa. Perpetuar essa ideia errada serve de gatilho para aquelas pessoas que, vendo personagens de pessoas trans a serem desempenhadas por pessoas cis, vêem ali uma justificação para reforçar a sua transfobia.

Esta é, aliás, uma questão que, por regra, apenas se coloca quando estão em causa papéis de personagens trans. Porque, na prática, raramente é visto uma personagem cis ser desempenhada por uma pessoa do género oposto. Com todas as questões de representação e o seu poder, tanto de emancipação como de destruição, por que a hipótese só é colocada quando em causa está um papel trans?

A questão desaparece quando as pessoas trans se representam a si mesmas. A Laverne Cox, por exemplo, é tão mulher à frente de uma câmara como fora. “Quando vemos estas mulheres fora do ecrã como mulheres, isso desfaz a ideia de que são homens mascarados“, explicou Richards.

Sendo as mulheres trans, em particular, um dos grupos historicamente mais perseguidos, violentados e assassinados no mundo, estas são questões que importam ser levantadas e que importam ter em conta, em cima e fora do palco. Em 2023 já nem deveria ser sequer uma questão.

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