Na Jornada Mundial da Juventude cantar é em nome de Todos (Todos… Todos?)

Na Jornada Mundial da Juventude cantar é em nome de Todos (Todos… Todos?)

O meu sonho era que o título deste texto tivesse sido algo como “Na Jornada Mundial da Juventude (JMJ) cantar é em nome de Todos (Todos… Todos? Ou ‘Todos vão ouvir a nossa voz’ porque fazemos questão de pregar os nossos valores, e entre estes está o de que todos somos iguais [ainda que uns sejam mais do que outros])”.

Sobre o que me traz aqui hoje, “Todos” tem sido o mote do encontro. Foi um conceito central ao hino oficial da JMJ, e uma palavra que o papa fez questão de utilizar para pôr os presentes a gritar em uníssono. Na verdade, funcionou muito bem, foi tipo os ganchos musicais em que o público dos concertos consegue acompanhar, não obstante a generalidade do seu discurso ser um bocadinho na ordem das palavras leva-as o vento do Parque Eduardo VII, até porque de boas intenções está o… (ai o herege!).

De volta ao tema, ainda que morfologicamente falando o “todos” seja um determinante indefinido, parece-me que está claramente definido, já que a retórica do rebanho de deus soa-me sempre um bocadinho à la George Orwell, “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”. Afinal, rapidamente começaram a circular os acontecimentos que mostraram pessoas da comunidade LGBTQIA+ a sofrerem discriminação durante o evento, e não restam dúvidas de que têm sido agressões feitas por crentes. Foi o caso lamentável de uma mulher trans que foi interpelada por estar passear com uma das bandeiras que assinala uma parte da comunidade LGBTQIA+.

Se “todos” é o centro da Jornada Mundial da Juventude, “outros” é o seu subtexto

O que menos me chocou, na verdade, foi saber que uma missa da comunidade LGBTQIA+ foi interrompida e invadida por um grupo de crentes conservadores. Primeiro, por ser um espaço de caráter mais privado (ao contrário da cena pública com a bandeira), mas, mais do que isso, pelas características em que ocorreu. Notem que a estratégia de importunação foi rezar o terço em latim, o que não é por acaso. Sabemos bem pelas investigações historiográficas que as missas foram celebradas em latim durante séculos até que uma das reformas litúrgicas consentiu usar uma língua vernácula (a que pertencia aos habitantes de cada espaço geográfico). Sendo uma língua falada e entendida por tão poucos, o latim contribui no decurso do tempo para distanciar clero (hierarquicamente superior) do povo. O ressurgimento do latim é retornar à aplicação de uma das ferramenta de segregação social da Igreja, e uma mensagem clara de apartamento que diz: nós somos os crentes verdadeiros, vocês os outros.

Se “todos” é o centro da JMJ 2023, “outros” é o seu subtexto. Antes de chegarmos lá, deixem-me dizer que durante estes dias Portugal basicamente parou e os órgãos de comunicação social, da televisão aos jornais online, não falam de outra coisa que não seja JMJ. Bafejado com tantas entrevistas a peregrinos que chegam de todas as partes do mundo, foi impossível não reparar que quase todas as vezes que se apresentam pequenos e grandes grupos, aparecem a cantar e a dançar. Fui investigar um pouco e percebi que nesta e outras JMJ várias pessoas estabeleciam comparações com o Pride, o que não sei se me deixa orgulhoso (sim, o trocadilho é propositado) ou incomodado com a falta de gosto. Verdade é que até já ouço comentadores afirmarem que “a JMJ é uma manifestação de orgulho por ser católico” o que adensa, evidentemente, as comparações…

Enquanto me cruzava com os conteúdos afetos às JMJ dei conta de uma noticia que aliás já foi divulgada no esQrever. Durante as JMJ vai estar aberto o Centro Arco-Íris para acolher e acompanhar jovens LGBTQIA+, mas o que realmente despertou a minha atenção sobre o assunto é de teor mais subtil. Na notícia da TSF, Ana Carvalho diz que antes de formar este grupo tentou-se incluir a projeção de um filme na programação oficial da JMJ e que este foi recusado. Não vou obviamente especular sobre os motivos de tal resposta da parte da organização (apesar de conseguir pensar num conjunto de razões muito evidentes), porém, na mesma entrevista ela continua e diz que “nem sequer tentaram” propor o Centro à organização, “para que não fosse rejeitado”. Hmm…

Um repertório de músicas católicas que incluem as pessoas LGBTQIA+?

Não é meu intuito vir para aqui chover no molhado, nem colocar o dedo na ferida, não é novidade nenhuma para ninguém que a relação entre a Instituição Igreja Católica e a comunidade LGBTQIA+ é tudo menos saudável (os meus parágrafos de abertura são exemplo disso mesmo). Mais, poderíamos até dizer que existe uma dívida histórica a pagar à comunidade por séculos de discriminação que continuam, ainda, a construir as pessoas LGBTQIA+ como vivências pecadoras. O que me passou pela cabeça foi algo mais positivo, até porque nesta matéria subscrevo o trabalho da teórica de género Eve Kosofsky Sedgwick e a sua noção de “leitura reparadora”. Para a autora, ao invés de estarmos sempre a adotar uma postura paranoica que antecipa (e sublinha) todos os horrores feitos à comunidade LGBTQIA+, que tal estarmos abertos à surpresa e à novidade?

Deixemos estas questões de lado por uns instantes. Existem de facto pessoas LGBTQIA+ que são crentes e vivem momentos complexos quando são confrontadas com os membros de uma Igreja que tem dificuldade em aceitá-las como pessoas (uma plenitude que inclui, obviamente, as suas orientações, expressões, características sexuais, entre outras). Mas sabiam que desde o início desde século há grupos dentro da Igreja Católica que têm-se esforçado por criar um repertório de músicas que incluem as pessoas LGBTQIA+ nas suas temáticas?

As práticas musicais são atividades que criam uma sensação de comunidade, união, sentido de grupo e identificação, e também são muito eficazes na construção do seu contrário. Ao ver que tantas pessoas ao longo destas Jornadas têm vivido a sua fé através da música, fez-me pensar que, de facto, as músicas que estão a ser criadas podem ajudar a minimizar os impactos nocivos de tantos discursos que agridem a comunidade. Chamo à atenção para uma conjunto de músicas com o título Songs For the Holy Other: Hymns Affirming the LGBTQIA2S+ Community. Na notícia que li sobre a compilação, dizem que com ela propõem-se a “construir um novo hinário tradicional”. A construção da tradição é, inclusive, um termo académico sublinhado por Eric Hobsbawn e Terence Ranger no seu livro de 1983, The Invention of Tradition. A tese dos autores é que muitas das tradições que nos parecem seculares e estabelecidas são, na verdade, invenções recentes, calculadas, e que são projetadas por um grupo de pessoas com uma finalidade.

Repensar profundamente a tradição (musical e não só) que define a Igreja, e o lugar das pessoas LGBTQIA+ na mesma, é um passo que terá valor para os que dela necessitam. Ainda assim, importa ressaltar que não apaga o que foi feito, não elimina um problema sistémico com séculos de história e não faz desaparecer a força que tem na cultura portuguesa. Também não posso deixar passar a oportunidade para lamentar o título da compilação que não é nada feliz, “The Holy Other” mais uma vez pontua uma normalização – existe um crente padrão e depois os ‘outros’ que agora ‘estamos a incluir nos nossos rituais’. Por isso mesmo, termino com o mesmo chavão com que comecei: será que já chegámos ao ponto em que os crentes estão realmente a cantar sobre todos, todos, todos? É que parece-me que existem outros “todos” que ainda não foram contemplados.