Noção procura-se: Sobre o assédio no meu local de trabalho

Noção procura-se: Sobre o assédio no meu local de trabalho

Nota: Por uma questão de segurança e privacidade, os nomes e contextos foram alterados nesta história de assédio no local de trabalho. Para denunciar assédio no local de trabalho poderá fazê-lo no site do governo.

Contrariamente ao habitual, o desabafo que trago hoje é sobre uma situação que está a acontecer comigo. Digo que está a acontecer, porque infelizmente, continua a verificar-se. Refiro-me ao assédio. Infelizmente, diz-me a minha experiência que é algo pelo qual todas as mulheres passam pelo menos uma vez na vida. A realidade estará mais próxima de que passamos, nós mulheres, várias vezes. E uma vez que seja é já demais.

Antes de avançarmos, importa dizer que os episódios a seguir relatados correspondem a situações verídicas. São acontecimentos que se verificaram ao longo do tempo, alguns deles em simultâneo, outros com algum tempo de intervalo entre eles. Os nomes dos visados foram alterados de forma a não ser comprometida nem revelada a sua identidade.

O início do assédio deu-se com a entrada numa nova empresa

No início do ano passado, janeiro de 2022, consegui entrar na prestigiada empresa de tecnologia, como há tanto tempo almejava. A dita empresa, cujo nome por motivos óbvios não será mencionado, encontra-se no nosso país há vários anos. Consegui ficar na sucursal de Lisboa. Após anos de trabalho em pequenas empresas nas quais não me sentia realizada, foi com bastante entusiasmo que abracei esta nova aventura. Inicialmente, tinha a ideia de alugar um apartamento, estando na casa dos 30 desejava manter a minha independência. A realidade mostrou-se mais dura do que esperava, com o salário que aufiro, o único espaço que consegui foi um modesto quarto. Não era o ideal, mas sempre é melhor que voltar para a casa dos pais. À época namorava com a Nicole, atualmente mantemos uma bonita amizade que muito prezo. 

No primeiro dia desta nova aventura, não conseguia esconder a excitação. Mal dormi na noite anterior tal era o entusiasmo. Fui muito bem recebida por toda a gente, confesso que num meio tão exigente não esperava aquele ambiente caloroso. Tudo só para mais tarde, com o tempo, descobrir que aquela receção era na verdade mais macabra que outra coisa. Tendo em conta as minhas competências e as necessidades da empresa, fui integrada na equipa mais competitiva. E tenho de reconhecer que isto foi um boost na minha autoestima. Mas cedo passou de tão volátil que era.

Intervenientes dos episódios de assédio no local de trabalho

Noção procura-se: Sobre o assédio no meu local de trabalho

A equipa é constituída por uma líder, a Fernanda – conta com quase 40 anos de experiência na matéria e é uma espécie de mãe. Para o bem e para o mal, quando é preciso também sabe puxar da sua autoridade. Fazem ainda parte da equipa o Emílio, o Juan, o Nuno, o Mário e o Pedro. Importa falar um bocadinho mais detalhadamente sobre cada um deles. Vamos a isso:

  • Emílio, 58 anos, casou-se recentemente com a namorada de longa data, é pai de uma adolescente de 17 anos, tenho cá para mim a leve impressão que sofre da síndrome de Peter Pan;
  • Juan, perto da idade da reforma, divorciado mais vezes do que consigo contar com uma mão, sem filhos assumidos, assume-se, no entanto, como um womanizer;
  • Mário, 51 anos segundo diz está junto com a companheira há mais de 15 anos (não percebi ainda se é casado), tem um filho com 10 anos, é o típico gracinhas sem graça;
  • Nuno, 18 anos, citando o próprio “lindo, livre, leve e solto”, muitas vezes soltinho demais diga-se, diz ter tanto amor para dar que seria um desperdício comprometer-se, regressou recentemente do estrangeiro onde passou a maior parte da sua curta vida;
  • Pedro, 40 anos, solteiro, pai de uma bebé de 3 anos, o galã invulgar.

A Fernanda pouco importa para história, visto que as mais das vezes se encontra em reuniões ou fora do país. É de assinalar ainda que as minhas considerações sobre cada um deles são total e completamente subjetivas, sendo por isso mesmo, todas elas questionáveis. 

A equipa é maioritariamente constituída por homens. Nos primeiros tempos era um detalhe que nem me apercebia ou não dava grande importância. Com o passar do tempo, fui-me apercebendo do quanto estou num mundo de homens. E aqui não falo só no ratio, que ronda aproximada 1 mulher para cada 10 homens, falo também na mentalidade. Falo dos bafientos e conservadores valores do patriarcado.

Fui muitíssimo bem recebida por toda a gente

Vamos agora aos tristes episódios que motivaram este texto. Como disse anteriormente, fui muitíssimo bem recebida por toda a gente. E infelizmente vim a confirmar que muita da simpatia que me era dirigida estava pejada de segundas intenções. Não precisei de chegar à segunda semana para que essa simpatia me fosse cobrada. Embora sejamos uma equipa, trabalha cada um no seu escritório (aleluia), partilhamos o piso. As visitas ao meu escritório eram diárias e constantes por todos eles. O Pedro nem tanto. Digo visitas porque os alegados motivos que os levavam até lá sempre me soaram mais a desculpa esfarrapada que outra coisa. À hora de almoço todos queriam almoçar comigo, e, tendo em conta que ainda estava a conhecer os cantos à casa e a ambientar-me, pareceu-me normal. Até isso me começar a ser meio imposto. A verdade é que sempre gostei de manter as águas separadas, e embora perdesse algum tempo no caminho, preferia ir almoçar a casa. A primeira vez que decidi não levar marmita fui questionada e posta em causa. O Mário ficou particularmente zangado. Não é exagero quando emprego a palavra zangado, por norma ia de propósito ao meu escritório impondo-me não só o seu horário de almoço como a sua companhia. Com algum custo, lá consegui passar a ir almoçar em casa. 

Desde o primeiro momento que o Mário se apresentou como um piadolas sem piada. O típico macho triste. Sempre com comentários desnecessários, desadequados e profundamente machistas. Percebi que era a sua forma de me galantear. O surpreendente é que nem perante o meu notório desagrado ele parava. Depressa perdi a paciência com ele. Foi por isso que ficou tão furioso quando lhe disse que passava a ir almoçar a casa, a altura por excelência em que ele mais me importunava, seduzia quero eu dizer. Ele foi o primeiro a fazer-me sentir desconfortável. Muito desconfortável. E mesmo com as minhas tentativas de lhe mostrar de forma simpática que o seu esforço caia em saco roto, continuava sempre a insistir. Houve uma altura em que até me senti perseguida. Aguardava que eu saísse e insistia em levar-me a casa. Esta situação fez-me sentir tão desconfortável que acabei por desabafar com alguns colegas. Não os surpreendi. Confidenciaram-me que é o modus operandi do Mário no que toca a engate.

Com o passar do tempo, dei-me conta de que aquela aparente solidariedade para comigo era falsa. Na verdade, eu era o naco de carne em disputa. Tendo posto o Mário em cheque, o caminho ficava facilitado para os restantes garanhões.

Se fores lésbica és um grande desperdício

Este episódio fez com que o Emílio se aproximasse de mim. Não sendo exatamente como o Mário, as intenções e as ideias que defendem estão inteiramente na mesma linha. Embora seja mais novo, podia igualmente ser meu pai. Asco. O Emílio tem a particularidade de ser muito dissimulado nas suas investidas. E é de tal forma calculista e perspicaz que foi o único a colocar em causa a minha orientação sexual. Certo dia disse-me assim: “Amélia, tu vê lá! Tu é que sabes mas eras um grande desperdício”. Também já fez questão de partilhar comigo que não é preconceituoso e até acha bem que existam gays. Já as lésbicas, considera-as concorrência desleal porque “sabem coisas que um gajo não sabe”. Apesar de rir interiormente sempre que sou brindada com comentários deste tipo, no fundo sinto-me triste e preocupada. Recordo que o Emílio tem uma filha de 17 anos, não sei qual é a educação que a miúda tem recebido, mas espero que ela seja diferente do modelo que tem em casa.

Apesar de cauteloso, as investidas foram uma constante ao longo do tempo. A maioria das vezes interpretava-as como brincadeira, hoje, juntando as peças todas, vejo que faziam parte de um empreendimento traçado a régua e esquadro. Comecei a sentir-me incomodada com o Emílio não só devido aos seus comentários LGBTfóbicos, mas pelo crescente número de visitas ao meu escritório. Começou a elogiar-me cada vez mais, depois a minha roupa e elegância. O auge, o grande momento que foi certo dia pouco depois de a Nicole ter terminado comigo. Eu estava visivelmente triste e a atravessar uma fase difícil. Apercebendo-se da minha vulnerabilidade, o Emílio aproxima-se de mim oferecendo-se para me consolar. Mais, é de uma generosidade tal que só o está a fazer porque se apercebeu que não estou bem e ele tem a solução. Segundo me informou, todas as sortudas por si consoladas, esposa e amantes, saíram extraordinariamente satisfeitas e refeitas, palavras do próprio. Agradeci e dispensei. Não cabia em mim de incredulidade. Perante a minha recusa, o Emílio ficou (espantem-se!) muito ofendido e magoado. Depois disto, soube que me tinha tentado prejudicar na empresa. Ainda assim, consigo manter uma relação cordial com ele. E como bom macho alfa não se dá por vencido, de quando em vez ainda tenta a sua sorte.

Noção procura-se: Sobre o assédio no meu local de trabalho

A minha entrada na empresa coincidiu com a contratação do Nuno. Um puto de 18 anos cheio de lábia, pinta e com conhecimentos extraordinários. É sem dúvida uma mais valia para a equipa e acredito que tem um futuro muito promissor à sua frente. O que tem de maduro nalgumas coisas, tem proporcionalmente de imaturo em muitas outras. Esperava deste miúdo um espírito jovem, mas na verdade é também ele um machito alfa. Entre outras atrocidades, foi da sua boca que saíram as palavras “sou um heterossexual profundamente convicto”. Ao escutar tal afirmação tenho para mim a ideia de que essa convicção não será tão profunda assim.

Sempre tive uma boa relação com o Nuno, quase maternal. Se tivesse sido mãe adolescente, podia muito bem ter um filho da idade dele! No início do ano foi-me pedido que o acompanhasse a uma formação. Ali, longe da empresa e dos tubarões que não arredavam pé do meu escritório, o puto sentiu-se confiante para testar as águas. Não entrando em grandes detalhes, o que posso dizer é que houve uma proposta muito indecente. E a partir daí comecei a ser bombardeada com mensagens românticas. Já o chamei à atenção várias vezes, sempre sem surtir efeito. 

Estava a sentir-me de tal forma desconfortável, não só com o Nuno, mas com algumas das anteriores descritas, que decidi, na ausência por tempo indeterminado da Fernanda, falar informalmente com o sub-diretor da empresa. A resposta que recebi foi que havia muita gente a querer ocupar o meu lugar, e se não estava satisfeita a porta é a serventia da casa. Além disso, vi ainda as minhas queixas serem completamente desvalorizadas com comentários condescendentes do género, “mas estava à espera de que os homens se comportassem como? Não vejo aí nada de mal, a Amélia é uma mulher atraente, eles não são cegos”. Não me podendo dar ao luxo de ficar sem o meu quarto que já me retém mais de metade do ordenado, tentei gerir tudo tão bem quanto me é possível. 

Pouco tempo depois fui com o Pedro a uma reunião. Nunca tinha convivido muito com ele. Tenho de reconhecer que foi uma agradável surpresa. A reunião foi um sucesso. E foi ótimo o regresso a casa na companhia do Pedro. Este colega, ao contrário dos restantes, conquistava não só a minha admiração como até um certo carinho. Depois da reunião passámos a falar mais. Apesar da  aproximação, os outros colegas não se aperceberam, o Pedro, tal como eu preza muito a privacidade. Este colega aparecia na minha vida como uma lufada de ar fresco. Era fácil falar e muito agradável estar com ele. Até que um dia, ao regressar de uma reunião, tinha uma prenda no meu escritório. Algo simples e simbólico bem ao estilo do Pedro. Algo muito significativo de como ele estava a ver as coisas. Não o queria magoar, mas também não lhe queria dar falsas esperanças. Agradeci a oferta, temendo que ele se ofendesse com a minha simplória mensagem. Para minha surpresa convidou-me para um jantar romântico num conhecido e reputado restaurante da capital seguido de um passeio surpresa. Embora me sentisse lisonjeada, não queria nada daquilo. Recusei e fui o mais sincera que pude com ele, sem lhe dizer no entanto que sou lésbica. Tive receio de perder um bom colega, mas o que verifiquei é que o Pedro é de facto diferente dos outros. Mantemos uma boa relação. Sem ressentimentos.

Não estava preparada para o que me aparecia no ecrã

Naturalmente guardei o melhor para o fim. O Juan. Desde o primeiro dia que olhei para ele como um avôzinho. Sempre muito bem-disposto e disponível para todos, sentia uma genuína empatia e simpatia por ele.  Cedo me apercebi que era uma espécie de Casanova incurável. Contava as suas aventuras e desventuras por todo o piso com muito orgulho e humor. É um tipo de fácil convivência.

Aproximou-se de mim pouco depois da Nicole ter acabado comigo. Apercebeu-se queeu andava em baixo. Contei-lhe que estava a tentar superar o fim de uma relação, não defini género, referi-me sempre à Nicole como pessoa. O Juan partiu do pressuposto que era um homem (ah como adoro a heteronormatividade), e aí passei a usar o nome de código que os meus amigos inventaram para a Nicole para podermos falar normalmente dela na presença de mentes retrógradas, Guilherme. Disse-lhe então que o Guilherme foi e é uma pessoa muito especial e importante para mim, que nunca nenhum de nós quis ter filhos mas juntos as coisas faziam sentido. E se faziam sentido ao lado dele, tendo a relação acabado, também essas coisas deixavam de ter sentido para mim. O Juan respondeu que ainda sou jovem, tenho tempo, e de certeza que vou conhecer alguém que é mesmo o tal, talvez até já o conheça. Respondi que, de facto, candidatos não faltam, o que falta é mesmo o meu interesse.

A coisa começou a descambar a um ritmo frenético mais recentemente. Nos últimos meses o Juan tem-me mandado mensagens para o telemóvel. Vendo que não respondo começou também a mandar para Whatsapp. Inicialmente nem abria, recentemente decidi ir ver as mensagens. Erro. Não estava preparada para o que me aparecia no ecrã. Além de inúmeros poemas, perfeitas declarações de amor, tinha também várias mensagens de cariz bastante sugestivo. Desadequado e completamente desnecessário na minha opinião. Começou então a ligar-me. Decidi atender, erro. Estava furioso. Não compreendia porquê que eu não respondia às mensagens nem ligava de volta, que falta de consideração. Respondi que não o queria melindrar nem ofender, mas estava a haver um enorme equívoco, se tinha dado a entender coisas que não correspondem nem nunca corresponderam à realidade pedia desculpa, mas de facto aquilo era demais. Ainda estou no rescaldo de saber qual é o desfecho disto.

Sinto que não pertenço, mas a verdade é que pertenço eu e todas as mulheres

Enquanto me tentava instalar para uma nova aventura, fui obrigada a ter de gerir a minha vida pessoal, amores e desamores, com sucessivos episódios de assédio. O meu lugar na empresa já foi posto em causa várias vezes, e curiosamente sempre que acontece coincide com uma nega que dei a um colega. Não menos curioso é o facto da minha competência nunca ter sido posta em causa.

Gosto muito do que faço, e do ponto de vista profissional nunca me senti tão realizada. Estou nesta empresa por mérito. Apesar de tudo isso, sinto muitas vezes vontade de ir embora por me sentir também deslocada. Sinto que não pertenço. Mas a verdade é que pertenço. Pertenço eu, e pertencem todas as mulheres. Não é aceitável nem tolerável que tenha de passar por todas estas situações. Enoja-me este machismo, este patriarcado. É tempo de tirar as teias dos olhos e do cérebro, já não fazemos fogo com pedras. 

Quando tentei denunciar formalmente o que estava a acontecer a resposta que recebi foi “filha tens razão, mas mede bem as consequências, porque não vais mudar nada e eles vão-te fazer a vida num inferno”. Depois de falar com colegas de outras equipas que estão na empresa há mais tempo, tive conhecimento de outras situações de assédio no local de trabalho, várias, que não deram em nada. Nem as denunciadas. A denunciada acabou sempre por sair da empresa tal foi a pressão que foi sujeita após a queixa. 

Acho que a resposta que mais revolta é “então, mas estavas à espera do quê?”. Que tal ser tratada com respeito? É pedir assim tanto? Temos ainda um muito longo caminho a percorrer. Enquanto homens tiverem comportamentos inapropriados e se sentirem no direito de tal sem perceberem que não é adequado, estamos a falhar enquanto sociedade. Comportamentos animalescos são um reflexo dessa falha. Os machos alfa, infelizmente, não são uma espécie em vias de extinção. E por incrível que pareça julgo até que tem a capacidade de se fecundarem uns aos outros. Não é normal!

Educação, empoderamento e denúncia são essenciais para combater o assédio no local de trabalho

A educação tem aqui um papel preponderante, urge mudar as mentalidades. Há que desconstruir o patriarcado para ontem e já seria tarde! A justiça tem de andar de braço dado com a educação neste campo. A penalização tem de ser pesada e existir de facto. Não pode haver tolerância nestas situações. A justiça tem de funcionar como ferramenta punitiva e dissuasora no que toca à perpetuação destes comportamentos.Perdoem-me os mais sensíveis, mas a verdade é que nem sempre me é fácil gerir tudo isto de forma pacífica.

Para denunciar assédio no local de trabalho poderá fazê-lo no site do governo criado especialmente para o efeito.

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