
Decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos reconhece falhas no processo que excluiu a atleta sul-africana das competições. Os direitos das mulheres e atletas com variações corporais voltam assim ao centro do debate.
Caster Semenya venceu mais uma etapa de uma longa e dolorosa maratona legal. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) decidiu esta semana, por 15 votos contra 2, que a atleta sul-africana foi privada do seu direito a um julgamento justo na Suíça, onde anteriormente tinha perdido uma das batalhas judiciais contra as regras da World Athletics.
Essas regras, aplicadas desde 2019, obrigavam Semenya — campeã olímpica e mulher cisgénero com diferenças no desenvolvimento sexual (DSD) — a reduzir os seus níveis naturais de testosterona através de medicação ou cirurgia, se quisesse continuar a competir em provas femininas entre os 400 e os 1500 metros.
“Porque é que teria de mutilar o meu corpo para agradar a regras de outras pessoas?”, questionou Semenya, que descreve na sua autobiografia The Race to Be Myself como essa pressão a afastou do desporto que ama.
O início de um caso cruel
Tudo começou em 2009, quando, com apenas 18 anos, Caster Semenya venceu o Campeonato Mundial dos 800 metros. A sua performance — e, de forma insidiosa, o seu aspeto físico — levaram a que fosse sujeita a exames ginecológicos e genéticos sem consentimento informado. Os resultados foram posteriormente divulgados na comunicação social.
Em 2019, o Tribunal Arbitral do Desporto (CAS) validou as regras da World Athletics, considerando que eram “necessárias, razoáveis e proporcionais“. A decisão forçou Semenya a tomar hormonas femininas — com efeitos colaterais prejudiciais — ou a abandonar as pistas.
A solução imposta entrava assim numa lógica binária e com contornos racista que se impõe sobre corpos considerados “fora da norma”. Esta decisão do TEDH reforça que o sistema falhou Semenya, ao não assegurar que os seus direitos fundamentais fossem respeitados.
Direitos humanos e corpos regulados
Embora a decisão do TEDH não se pronuncie diretamente sobre se as regras da World Athletics são discriminatórias, abre caminho para que o caso regresse ao Supremo Tribunal Suíço. Além disso, levanta novamente questões estruturais: quem define o que é ser mulher no desporto? Que corpos são autorizados a competir?
Relatórios, como o da Human Rights Watch, mostram que as políticas de verificação de género e “testes de feminilidade” têm sido aplicadas de forma desproporcionada a atletas africanas e asiáticas. O controlo dos corpos racializados — especialmente de mulheres negras — é uma constante histórica que ganha novas formas sob a capa da “justiça desportiva”.
Caster Semenya sempre afirmou ser mulher. Recusou o rótulo de “intersexo” e rejeitou que o seu corpo fosse reduzido a exames clínicos ou estatísticas hormonais: “Sou mulher. Sempre fui.”
Um futuro incerto, mas com esperança
Agora com 34 anos, Caster Semenya treina outras atletas. Apesar de a possibilidade de regressar às pistas continuar em aberto, para Semenya a luta já ultrapassou a sua carreira. “Antes de regularmos, temos de respeitar. Os direitos das atletas têm de estar em primeiro lugar.”
A decisão do TEDH poderá ter impacto noutras modalidades, como o boxe ou o futebol, onde se discutem atualmente regulamentos semelhantes. A crescente intenção do Comité Olímpico Internacional em uniformizar estas políticas só reforça a urgência de colocar os direitos humanos no centro.
Mais do que uma medalha, esta vitória simboliza a resistência contra um sistema que insiste em normalizar corpos e apagar diversidades. E lembra-nos que a pergunta continua urgente: quão mulher precisa ser Caster Semenya?
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