Relatório Cass: Entre a evidência científica e a instrumentalização da saúde de jovens Trans

Problemas do Relatório Cass: Uma Perspectiva Baseada em Evidência sobre a Saúde de Jovens Trans

O relatório Cass, redigido pela pediatra Hilary Cass e que visa reestruturar o cuidado de saúde de jovens trans em Inglaterra, tem sido alvo de preocupações por parte de especialistas e de famílias de jovens trans. Entre as recomendações do relatório, especialistas argumentam que muitas delas poderão ser desnecessárias, mas também potencialmente prejudiciais, dada a evidência científica atual sobre os benefícios dos tratamentos de afirmação de género.

O relatório acompanha os passos dados atrás quando o Serviço Nacional de Saúde (NHS) de Inglaterra anunciou uma mudança significativa na sua abordagem aos cuidados de saúde para jovens trans e pessoas não-binárias.

O que são bloqueadores da puberdade que estão no centro das atenções? Estes são um tipo de injeção ou implante reversível de medicação que pausa a puberdade. Estes medicamentos são prescritos para jovens cis que entram na puberdade precocemente e para jovens trans com disforia de género. Sendo reversível, a puberdade natural é retomada se a injeção for interrompida ou o implante removido.

Falhas na base de evidências do Relatório Cass

O relatório Cass sugere uma abordagem extremamente cautelosa no uso de bloqueadores de puberdade e na prescrição de hormonas a menores de 18 anos, citando preocupações sobre a qualidade e a robustez das pesquisas existentes. No entanto, esta perspectiva é criticada por não refletir adequadamente o corpo robusto de evidências que suporta os benefícios dessas intervenções, não só no que toca aos bloqueadores, mas também aos restantes fatores.

Natacha Kennedy, co-presidente da Feminist Gender Equality, desafia a afirmação do relatório de que “a transição social na infância pode mudar a trajetória do desenvolvimento da identidade de género para crianças com incongruência de género precoce”.

Kennedy escreve que “não há evidências de que proibir a transição social ajude as crianças trans” e vai, aliás, mais longe, uma vez que diz existirem “muitas evidências de que não ajudará”.

É minha opinião que o que Cass está a tentar estabelecer é uma abordagem de ambiente envolvente de ‘terapia de conversão‘ para crianças trans, removendo a sua autonomia, liberdade de expressão, saúde mental, apoio útil e saúde”, escreve.

Pesquisar populações minoritárias é um desafio, mas não impede o seu cuidado

Também Tehseen Ladha, pediatra e professora assistente da Universidade de Alberta, questionou as críticas do relatório sobre a pesquisa clínica. Ladha disse que a pesquisa pediátrica é muitas vezes imperfeita, como é o caso em muitos outros campos médicos, devido a bloqueios sistémicos.

Esse é o caso em quase todas as esferas da medicina porque o custo, o tempo, a viabilidade e a capacidade ética de conduzir o que é considerado um ensaio científico de alta qualidade simplesmente não estão lá”, disse. Encontrar evidências perfeitas é especialmente difícil ao lidar com uma população marginalizada, porque esses grupos muitas vezes “não foram pensados como prioritários ou importantes”, acrescentou.

Da mesma forma, Jake Donaldson, médico de família canadiano que já prescreveu bloqueadores da puberdade e terapia hormonal para pacientes trans, argumentou que não ter ensaios clínicos aleatórios não deveria ser um motivo para reter os cuidados.

Na verdade, há muitas evidências, mas não na forma de ensaios clínicos aleatórios”, disse ele. “Seria como dizer a uma mulher grávida, já que faltam ensaios clínicos aleatórios para o cuidado de pessoas na gravidez, não vamos tomar os devidos cuidados… É completamente antiético.

Sam Wong, presidente da Associação Médica de Alberta, explicou que recriar tais ensaios clínicos aleatórios (e que implicariam, por exemplo, a existência de placebos) a cuidados de saúde trans é praticamente impossível. “Dentro de poucos meses seria óbvio para a pessoa se estaria a tomar bloqueadores da puberdade ou não [placebo]”, disse.

Os bloqueadores da puberdade têm sido usados “durante décadas” e, ao prescrevê-los, os efeitos colaterais são sempre esclarecidos à família e jovens. “Na maioria das vezes, é um medicamento seguro.”

Estudos refutam cautelas do Relatório Cass

Estudos têm oferecido uma base sólida que desafia diretamente as recomendações cautelosas do relatório ao longo dos anos:

  • Continuidade dos Cuidados de Afirmação de Género: Pesquisas mostram que até 98% das pessoas adolescentes que começaram a usar bloqueadores da puberdade prosseguiram a terapia hormonal na vida adulta, contrariando a ideia de que muitas poderiam desistir ou reverter a decisão.

    Importa referir que, quanto às pessoas que não continuaram os cuidados de afirmação, é sabido que, das pessoas que fazem uma destransição, destas, 82,5% atribuem a sua decisão a pelo menos um fator externo, como a pressão da família, ambientes escolares não afirmativos ou aumento da vulnerabilidade à violência, incluindo a agressão sexual.
  • Benefícios dos Bloqueadores da Puberdade Para a Saúde Mental : Estudos publicados na revista Pediatrics evidenciam que o uso de bloqueadores da puberdade está associado a uma redução significativa no risco de pensamentos suicidas entre adolescentes trans, sublinhando a importância deste tratamento para a sua saúde mental.

    O principal autor do estudo, Jack Turban, psiquiatra da Harvard Medical School, disse que as descobertas aumentam a “crescente base de evidências sugerindo que os cuidados médicos de afirmação de género para jovens trans estão associados a desfechos superiores de saúde mental na idade adulta”.
  • Impactos Positivos da Terapia Hormonal: A New England Journal of Medicine publicou um estudo que acompanhou jovens trans em terapia hormonal, notando melhorias significativas na saúde mental, como redução de ansiedade e depressão e aumento na satisfação com a vida.

    Verificou um aumento de emoções positivas, satisfação com a vida e a melhoria da sua autoconfiança. Encontrou igualmente como participantes relataram menos ansiedade e uma diminuição na depressão sentida.

Políticas baseadas em evidências são imprescindíveis para a prática clínica

A evidência disponível sugere que o relatório Cass pode estar a criar barreiras desnecessárias ao acesso de tratamentos vitais para jovens trans. As políticas e recomendações deveriam ser formadas com base nas melhores evidências disponíveis, que claramente apoiam os tratamentos de afirmação de género como cruciais para o bem-estar físico e mental.

A Growing Up Transgender – organização de famílias de jovens trans – afirma que o relatório “não consegue despatologizar a vida trans”. Além disso, “não centra os direitos das crianças trans. Fornece uma camada de credibilidade para políticas, práticas e sistemas que são desatualizados, patologizantes, abusivos e profundamente prejudiciais para crianças e jovens trans.

Relatório de saúde está a ser usado para instrumentalizar jovens trans

As organizações britânicas Amnistia Internacional UK e Liberty também alegaram que o relatório já está a ser explorado por figuras e organizações anti-trans. “Esta revisão está a ser instrumentalizada por pessoas que procuram a disseminação de desinformação e mitos sobre cuidados de saúde para jovens trans”, disseram. “É preocupante que certos media e muitos políticos continuem a espalhar pânico moral sem levar em conta as possíveis consequências para as pessoas trans e suas famílias.”

Os cuidados de saúde para pessoas trans, especialmente jovens, é um campo onde a ciência deve prevalecer sobre o conservadorismo. As recomendações do relatório Cass, que procuram melhorar a qualidade do atendimento, não devem ignorar as evidências que demonstram os benefícios dos tratamentos de afirmação de género.

As decisões políticas devem refletir um compromisso com a saúde e o bem-estar das pessoas trans, assegurando que elas tenham acesso ao apoio necessário para viver de forma autêntica e saudável. É essencial que o debate sobre este tema continue aberto, crítico e informado pelas melhores práticas médicas e pelos estudos mais recentes.

O NHS tem o dever de cuidar de crianças trans, prevenir danos, evitar os efeitos de mudança de vida e estigma de passar por uma puberdade que não se alinha com a sua identidade de género“, escreveu Helen Webberley, médica da GenderGP. “Farei tudo o que estiver ao meu alcance para vos ajudar.”


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