Decorria o ano de 1996 e Nigel Owens, com 26 anos na altura, saiu de madrugada de casa deixando um bilhete à família. Com ele levou duas caixas de paracetamol, uma garrafa de whiskey e uma caçadeira. Deu uma última volta pela sua terra em Gales e seguiu para as montanhas. O suicídio, parecia-lhe, era a única solução para o seu sufoco.
Sofria de bulimia e a sua obsessão com o corpo fê-lo entrar num ginásio para perder a gordura que tinha em excesso e aumentar a sua massa muscular, pelo caminho usou esteróides para acelerar o processo e ficou viciado. “Estava a entrar num caminho que não tinha saída e fiz algo de que me arrependerei para sempre”, lamentou anos depois.
Owen não morreu naquela noite pela combinação de acasos: ao tomar os comprimidos entrou em coma antes de disparar e foi encontrado a tempo pelo helicóptero das equipas de busca. Foi levado para o hospital com uma overdose, onde permaneceu vários dias.
A reação dos pais à sua tentativa de suicídio e à carta que lhes deixou foi um dos pontos que o levou a mudar rumo. Até ali tinha vivido no medo de revelar a sua orientação sexual e assim permaneceu por mais uns anos, contou ele:
Tudo aconteceu porque não queria ser gay. Andava a lutar há anos. Não havia nada de mau em ser gay, mas sentia que não me enquadrava. Tive várias namoradas, mas senti sempre que algo não estava certo. E pensava: ‘Vou obrigar-me a apaixonar–me por esta rapariga.’ Mas isso nunca aconteceu. E nunca aconteceria. A partir de dado momento, percebi que não conseguia viver mais assim. No segundo seguinte [ao estar pela primeira vez com um homem], senti-me doente, fisicamente doente, envergonhado pelo que tinha feito. Não estava a aceitar o que era e fiquei deprimido.”
Sem conseguir ainda assumir-se, Owens desviou as suas energias para a arbitragem do râguebi. Depois de falhar uma penalidade que poderia ter dado a única vitória à sua equipa da época, o seu treinador disse, em tom de brincadeira, que se calhar Owens seria melhor como árbitro. Mas foi precisamente isso que fez e em 2005 arbitrou o seu primeiro jogo internacional, entre o Japão e a Irlanda. O sucesso da sua nova carreira fez-lhe bem, mas continuava a esconder que era homossexual e isso deixava-o angustiado. “Escondi durante nove anos, mas era demasiado. Não estava a conseguir ser árbitro porque não era feliz com a pessoa que era”, recordou.
Contou então primeiro aos pais, num dos momentos mais difíceis da sua vida, e depois ao seu patrão do Welsh Rugby Union. Por fim aos amigos: “A maior parte telefonou de volta ou mandou uma mensagem, tirando um. A maior parte deles já desconfiava. É impossível tentar descrever o que senti. Foi fantástico perceber que não fez diferença nenhuma para a família, amigos e para as pessoas no râguebi. Foi como nascer novamente.”
A revelação foi feita numa entrevista a um jornal galês, mas foi na televisão que Nigel Owens saiu do armário. O árbitro participava regularmente no programa de humor de Jonathan Davies e juntos tiveram a ideia de abordar o tema de forma implicitamente explícita. Owens estava escondido dentro de um armário e abriu as portas ao som da música “I am what I am”. “Não têm noção do que senti quando praticamente toda a gente se levantou e aplaudiu”, exclamou o árbitro.
A postura é uma imagem de marca e é reconhecida por adeptos e jogadores, desde as farpas ao futebol às brincadeiras com a sua homossexualidade. “Num jogo dos Ospreys, o Ryan Jones estava no balneário e disse-me para esperar que pudesse vestir alguma coisa. ‘Não faz diferença. De qualquer maneira, és muito feio’, respondi. Ele riu-se, eu ri-me, todos os outros jogadores se riram.”
No entanto, por vezes Owens tem ainda que lidar com homofobia de terceiros, nomeadamente de algum público que frequenta os jogos. Conta ele:
De início não me apercebi do abuso que foi dirigido a mim durante o jogo da Inglaterra contra a França, mas as pessoas relataram-no. Eu poderia ter chamado a polícia, mas em vez disso decidi encontrar-me com o meu agressor. Ele tinha apenas 18 anos de idade. Qual seria o ponto de arruinar sua vida? Ele pediu-me desculpas on-line e em pessoa. A coisa mais importante é que ele percebeu o que tinha feito. O facto de as pessoas lhe terem também chamado à razão e denunciado ajudou imenso a que ele tenha percebido o quão estava errado.
A nomeação para a final do Mundial no passado Sábado, dia 31, foi o derradeiro feito na carreira que faltava a alguém que está na terceira fase final e arbitrou duas finais da Heineken Cup. A filosofia com o apito vai continuar a fazer a diferença, dentro e fora de campo.
É impossível arbitrar um jogo de 80 minutos sem fazer pelo menos um erro, mas aprendemos com eles. Ao fazer isso, melhoramos e aceitamos o facto de que não há nada de errado em cometer erros na vida. No entanto, as pessoas têm de ver que algumas coisas são inaceitáveis.
Qualquer tipo de discriminação não pode ter lugar no nosso desporto ou na nossa sociedade. Tenho sido aceite por 99 por cento das pessoas no râguebi, mas haverá sempre aquele um por cento. Essas pessoas precisam saber que estão completamente erradas e por vezes basta que alguém se aproxime delas e lhes chame à razão e lhes diga que não podem fazer aquilo.
Haverá sempre um pequeno número de bullies. Eles estão na realidade em minoria, mas eles têm um enorme impacto sobre a vida das pessoas, e não o deviam ter. O que as pessoas precisam saber é que elas não devem sentir medo.
Se eu pudesse falar com ninguém na mesma posição que eu tinha quando eu era mais jovem, diria: “Confia em mim, tudo vai dar certo. Poderá haver um amigo teu ou um membro da família que não te vai aceitar, mas as coisas vão estar bem, basta que tenha algumas pessoas em teu redor a proteger-te e apoiar-te.
E aqui estamos.
Fontes: Jornal i, Independent e Eurosport (imagem).
Nota: Obrigado à Ana Paula Nogueira pela partilha das notícias 🙂