Orgulhosamente Nós

Há dias assim, em que a história é nossa. E o dia 13 de maio de 2016 foi mesmo um dia histórico. A Assembleia da República garantiu, com uma maioria alargada, o acesso à procriação medicamente assistida (PMA) para todas as mulheres. Não foi por acaso que esta foi a última vitória de um conjunto de vitórias que vieram eliminar discriminações da lei. Foi a última porque dizia respeito a mulheres e porque a discriminação conjugava sexismo e homofobia, nessa relação umbilical que nos tem limitado de tantas formas nas nossas vidas. Mas foi também a maior: a igualdade no acesso ao casamento foi um marco histórico fundamental, que abriu caminho para muitas vitórias depois dessa, da lei da identidade de género (que, no entanto, urge aperfeiçoar) até à igualdade na candidatura à adoção, aprovada também recentemente.

Mas esta foi a vitória maior porque era a mais difícil. Em 2005, todos os projetos de lei que vieram tentar regular o acesso à PMA discriminavam os casais de mulheres, não permitindo o reconhecimento da parentalidade de ambas as mulheres caso uma recorresse à inseminação artificial. A lei, publicada em 2006 como resultado desses projetos, veio mesmo impedir e punir esse recurso: só era permitido o recurso às técnicas de PMA a mulheres casadas ou unidas de facto com homens, ou seja, a mulheres devidamente tuteladas por homens, numa das heranças do Estado Novo que afinal não desapareceu com uma revolução. Só agora, a partir de agora, todas as mulheres poderão decidir autonomamente se pretendem engravidar – e os casais de mulheres passarão a ser automaticamente reconhecidas como mães face à lei. Sim, nada assusta mais do que a autonomia das mulheres. Celebramo-la hoje – e, contra a prevalência do sexismo que continua a ser tão ensinado, vamos continuar a celebrá-la sempre. E celebramos, com muito orgulho, mais igualdade e mais liberdade – numa história que é mais nossa porque é, finalmente, também de todas nós. É hoje que somos, cada vez mais, orgulhosamente nós.

Durante muitos anos, disseram-nos: não se casem, não adotem, não se reproduzam. Disseram-nos: escondam-se, finjam que não existem. Disseram-nos: não existam.

Esse tempo acabou.

A igualdade no acesso à parentalidade (adoção e PMA) veio garantir o passo simbólico que faltava para concluir um processo longo de igualdade formal, que tem que preceder a igualdade nos restantes planos. Nos 20 anos de existência da ILGA Portugal (e nos últimos 13, em que estive diretamente envolvido), a preocupação com a igualdade na lei esteve sempre lá. Porque a luta contra a discriminação tem que ser uma prioridade do Estado e porque só é possível desenvolver todo o trabalho que falta fazer de uma forma credível se não existir discriminação explícita na lei. Na luta contra qualquer tipo de discriminação, o fim da discriminação na lei é um primeiro passo, uma condição necessária – mas nunca suficiente – para acabar com a discriminação na sociedade.

Pois a lei, hoje, é nossa. A lei, hoje, já não define um “nós” e um “eles” – ou um “elas”. Só há espaço para nós, para um “nós” que não pode mais desagregar-se. A lei é nossa, de um país que é nosso, de uma República que é nossa. E queremos que todas as leis feitas a partir de agora sejam feitas para nós, sempre para todas e todos nós. É que já somos, orgulhosamente, nós.

Sabemos hoje que é a igualdade que nos une, sabemos hoje o orgulho que devemos ter em podermos dizer “nós”. E somos cada vez mais nós, com cada vez mais pessoas a juntar-se a uma luta que deveria ser de todas – e que continua, com cada vez mais força. E orgulhamo-nos também deste “nós” cada vez mais alargado, porque o caminho que temos pela frente é longo e exigente, porque continuamos a ter que fazer o tempo andar mais depressa. Porque, por mais orgulho na forma como o trabalho da ILGA Portugal fez o tempo voar nos últimos 20 anos e tornar possível o que parecia impossível, há muitas vidas que continuam a não poder esperar para poderem ser vividas sem discriminação.

Sabemos hoje o que merecemos. Sabemos hoje que merecemos que cada uma das nossas identidades possa ser afirmada com orgulho, sem silêncios, sem hesitações, sem medo. Porque só com essa liberdade teremos finalmente, e verdadeiramente, igualdade. E já sabemos que merecemos ser orgulhosamente nós.

Paulo Côrte-Real (Vice-Presidente da Direção da ILGA Portugal)

Fonte: Estudos Culturais (imagem).