No passado dia 12 a Rede Globo transmitiu um beijo histórico entre os actores Caio Blat e Ricardo Pereira na telenovela Liberdade, Liberdade. Assim é o relato vindo do Brasil da evolução das personagens LGBT nas ficção televisiva brasileira pelo Douglas Messeder:
“Um beijo represado, afoito, desesperado”. Em seguida Tolentino “tira a camisa. André engole em seco. Tolentino o empurra para a cama. André cai sentado. Começam a transar. Uma transa urgente, adiada, bruta e tão ansiada”. Isso foi o que pediu o roteiro da primeira cena de sexo entre dois homens da história da telenovela brasileira, protagonizada pelos atores Caio Blat (Brasileiro) e Ricardo Pereira (Português). A cena, intensa e sem sexo explícito, durou menos de 5 minutos, foi ao ar dia 12 de julho na novela “Liberdade, Liberdade” da Rede Globo, e desde então vêm criado polêmica e discussão.
Na trama, que ocorre em 1808, período em que o Brasil era sede da coroa Portuguesa durante a “vinda” da família real para o Brasil, os personagens de Caio Blat e Ricardo Pereira vivem atormentados pelo amor e atração que sentem um pelo outro, em uma época em que a homossexualidade era considerada “crime de sodomia” por Portugal, e cuja pena era a morte por enforcamento. Segundo o autor, Mario Teixeira, “Decidimos fazer como se fosse uma cena de amor. Não um amor homossexual, um amor heterossexual, um amor de verdade”.
Mas o que tem de importante nisso? Estou escrevendo a vocês, de um país onde é estimado que a cada 8 minutos uma pessoa LGBT é agredida e a cada 28 horas é morta por motivação homofóbica, e onde a espectativa de vida de travestis e transsexuais é de apenas 35 anos. Ou seja, embora o “crime de sodomia” não exista mais, a população LGBT continua sendo executada diariamente no Brasil. E esta foi uma cena de “sexo gay” exibida em plena TV aberta, em um país homofóbico e machista, onde isso se quer seria imaginado por anos.
Por muitos anos a representação de homossexuais na televisão brasileira se retringia principalmente a papeis cômicos, onde a graça residia na homossexualide e em trejeitos homossexuais, ou, por exemplo, na esposa que não sabia que o marido era gay, ou do pai que sofria por tentar esconder que o filho era homossexual. Frases como “Tem pai que é cego” ecoaram por anos na televisão brasileira e na casa de muitas pessoas. Até então, setores mais conservadores nunca se incomodaram com a representação de homossexuais na televisão, afinal, tais programas eram uma inesgotável fonte de insultos, os quais poderiam ser usados livrementes para humilhar e diminuir pessoas.
Nas telenovelas brasileiras, a representação do primeiro casal homossexual ocorreu em 1988 na novela “Vale Tudo”. Era um casal de lésbicas, e toda trama ocorria de forma muito discreta, com somente insinuações da relação que existia entre as duas. E desde então a presença de personagens gays em novelas fora do contexto humorístico, sempre foi alvo de indignação e polêmica, da qual obviamente as emissoras se aproveitam para divulgar suas tramas. Para se ter uma ideia, a 20 anos atrás na novela “A Próxima Vítima” houve a representação de um dos primeiros casais gays em novelas, e um dos atores (André Gonçalves), chegou a ser agredido na rua por representar um homossexual na televisão. A péssima recepção a casais homossexuais era tão grande que em 1998 a emissora chegou a remover um casal de lésbicas da novela “Torre de Babel”. Para justificar a saída das personagens, ambas morreram em uma explosão, simples assim!
No início desse século, as coisas pareciam está mudando, e em 2003 na novela “Mulheres Apaixonadas” foi retratado o casal adolescente Clara e Rafaela. Para justificar um beijo entre as duas, o autor Manoel Carlos teve que inseri-las na peça de teatro “Romeu e Julieta“, onde uma delas estaria substituindo o ator que faria o papel de Romeu. Ou seja, procurava-se justificativas para um simples beijo ser aceito pela sociedade. Outra tentativa de exibir um beijo entre homossexuais ocorreu em 2005 na novela “America”. A cena chegou a ser gravada e seria transmitida no último capítulo. No entanto durante a exibição do episódio a cena foi parcialmente vetada pela emissora, e o momento do beijo totalmente removido.
Esse primeiro beijo entre personagens homossexuais só foi ocorrer efetivamente em 2011 na novela “Amor e Revolução”, que aparentemente gerou uma menor polêmica por não ser transmitida pela Rede Globo, mas por outra emissora de menor audiência, a SBT. No entanto a polêmica foi grande o suficiente para impedir o “beijo gay” que já estava prevista desde o início da trama. Esse primeiro beijo gay em novelas brasileiras só iria ocorrer em 2014 na novela “Amor À Vida”. Um simples selinho seguido de um “eu te amo”. Uma cena tão simples, tão singela, mas tão cheia de significado e importância para a televisão. Agora não existiam insinuações, estava explicito, na trama eles se amavam, construíram uma vida e uma família juntos e no ultimo capítulo fizeram o que todo casal faz: Se beijam. O interessante dessa trama é que ela retratou justamente a mentalidade da população em relação a aceitação da representabilidade do tema LGBT na TV aberta. Enquanto um dos personagens, Félix [acima], era o antagonista na novela e fazia parte no núcleo cômico, não havia nenhum tipo de repulsa pela sociedade. O Félix era o típico vilão engraçado, e nem o fato de jogar a sobrinha ainda bebê em uma caçamba de lixo, pareceu abalar qualquer representante de grupos conservadores. Todos adoravam o Félix e suas frases, como “Se eu gostasse de mulher, seria ginecologista” ou “bofe bom é bofe burro”. Em determinado momento, principalmente devido ao talento gigantesco do ator Matheus Solano, o personagem passa a chamar tanto a atenção na trama que acaba ofuscando os próprios protagonistas. Do dia para a noite, o Felix passa a ser o protagonista da novela, que agora passa a abordar principalmente a redenção do personagem e sua relação conturbada com o pai. Nesse contexto, o Felix se apaixona por um homem e a partir daí toda a aceitação pelo público acaba! Ou seja, a sociedade brasileira aceita sem problema o fato do personagem jogar a sobrinha ainda bebe no lixo, mas recrimina um simples beijo.
Esse beijo é considerado um divisor de águas na televisão brasileira e impulsionou de fato a representabilidade de LGBTs na televisão, no entanto, o assunto continuou sendo um tabu, e ainda é ate hoje. De fato, em 2014, também houve um beijo entre lésbicas no último capítulo da novela “Em Família”, e em 2015, lésbica idosas se beijaram logo no primeiro capítulo de “Babilônia”. Esse casal era interpretado pelas atrizes Fernanda Montenegro e Nathália Timberg, ambas com 86 anos. Devido principalmente ao fato da cena não ter sido anunciada, sendo uma verdadeira surpresa, e ser interpretada por atrizes com a idade e a importancia destas duas atrizes (Fernanda Montenegro já chegou a ser indicada ao Oscar de melhor atriz), houve uma grande movimento de repulsa à trama. Inclusive, líderes religiosos (que infelizmente dominam a política no Brasil) deram início a um movimento de boicote aos patrocinadores da novela. A pressão foi tão grande que as personagens nunca mais se beijaram, mas pelo menos não foram explodidas e eliminadas na trama, como acontecia em 1998. Além disso, também houve uma tentativa de remoção de um casal gay que já havia sido anunciado desde o primeiro capítulo da novela. A trama já havia começado a desenvolver a relação entre os personagem, mas devido a forte pressão pela qual a novela passava, um dos personagens “deixou de ser gay”. Do nada tal relação simplesmente sumiu, os personagens se tornaram amigos, e para justificar o motivo pelo qual o personagem sempre dizia não querer se relacionar com mulheres, foi inventado todo um histórico traumático devido a uma tragédia no passado. No entanto não é só de um lado que existe pressão, e logo a novela voltou a contar com um casal gay. Logo foi inventado um primo do personagem “ex-gay”, que daria continuidade à toda relação que já havia sido prevista. Todo esse histórico foi responsável por “Babilônia” ser extremamente repudiada pela população mais conservadora. Essa repúdia foi extremamente aproveitada por emissoras evangélica que promoveram suas novelas baseadas na Bíblia.
Transitando pela linha tênue entre a busca por polêmica e a luta por representabilidade, ano passado (2015) a Rede Globo exibiu a primeira cena que insinuaria sexo entre duas mulheres, na minisérie “Felizes Para Sempre” transmitida após as 23:00. No entanto, não houve nenhuma polêmica em relação a esta cena, pois como dizem por aqui: “no Brasil a homofobia não resiste a duas lésbicas se agarrando”. Ou seja, dois homossexuais podem se beijar, se agarrar e irem para a cama, desde que sejam lésbicas jovens e bonitas. O mesmo não se aplicaria a duas idosas, pois como também se diz por aqui: “onde já se viu, duas velhas com essas idades fazendo essa pouca vergonha!”
Em todo esse contexto histórico e cultural, a cena de amor exibida dia 12 reflete a diversidade da vida e é uma verdadeira conquista na abordagem do tema LGBT na televisão brasileira, televisão essa, que vem sendo compartilhada com diferentes países do mundo, incluindo Portugal, onde a transmissão de algumas novelas acontece quase que simultaneamente, por meio da SIC. Se antigamente personagens homossexuais eram eliminados de novelas, hoje eles já podem se beijar, se casar, constituir família, adotar filhos, envelhecer e fazer amor. Apesar de todos o avanços na representabilidade de gays e lésbicas na televisão, ainda falta um longo caminho a ser percorrido, principalmente quando se trata de personagens travestis e transsexuais. Embora tais personagens existam, ainda são restringidos a papeis mais coadjuvantes e beirando contextos cômicos, o que infelizmente ainda é essencial para que haja um mínimo de aceitação pela sociedade.
Douglas Messeder