
O comentador político Pedro Marques Lopes, apesar do que se possa pensar num confronto mais imediato com as suas cores políticas, sempre se mostrou bastante progressivo nas questões sociais, nomeadamente nas LGBT, e ontem escreveu, no Diário de Notícias, uma brilhante e acutilante crónica que pretende denunciar os combatentes do “politicamente correto”.
Tornou-se comum dizer que a liberdade de expressão está em causa por causa de um imaginário excesso do politicamente correto – leia-se, do cuidado com a linguagem de forma a evitar expressões discriminatórias e ofensivas de grupos historicamente perseguidos. Parece-me que quem se mostra alarmado com esse cenário vive a realidade dos Estados Unidos ou da Inglaterra (onde há exageros notórios, embora não tão frequentes como nos querem fazer crer) e não a de Portugal ou, no mínimo, não anda nas ruas portuguesas, não frequenta locais públicos, nem sequer se dá com os seus concidadãos.
Depois de apontar o dedo aos que querem fazer entender que a criminalização da liberdade de expressão e a defesa dos direitos das minorias são antagónicas, continua e elenca tantos grupos que são vítimas diárias de discriminação em Portugal. E elas são todas as que não são o homem cis heterossexual católico branco: o puto efeminado no recreio da escola, a mulher que tem receio de assédio ao atravessar a rua para ir comprar tabaco, a pessoa não branca a ser insultada no trânsito porque demorou demasiado tempo a avançar no cruzamento. Neste exercício de aproximação ao quotidiano do nosso país apercebemos-nos de algo fundamental. Que todos nós fechamos os olhos a algum tipo de discriminação. Porque ela, em Portugal, país de brandos costumes, acontece a cada outro momento. Todos nós menosprezamos uma luta que achamos menos próxima. Menos importante. Menos nossa. É aí que é fundamental perceber que não podemos jamais separar lutas que visam fazer prevalecer a igualdade e ser uníssono na rejeição de qualquer afronta à liberdade. Liberdade de ser. Porque acerca da liberdade de expressão, Pedro Marques Lopes continua:
Só mesmo gente que vive numa realidade paralela, quem não sai do Chiado ou passa mais tempo em Washington ou a ler o The New York Times é que pode dizer ou escrever que os homens, os brancos, os católicos ou os heterossexuais estejam sob qualquer tipo de ameaça – como tantas vezes se ouve e lê – ou que há ameaças à liberdade de expressão, em temas como a “raça” ou a orientação sexual. Temos sim é um ainda longo caminho a percorrer na garantia do respeito pelas minorias, pela diferença e, sim, é verdade, pelas mulheres.
Continuo a tentar, muitas vezes frustrado, combater o argumento dos limites da liberdade de expressão, nomeadamente da efetiva não compreensão no uso do insulto, já muito aqui debatida. De que existe um policiamento excessivo do que se pode dizer sem ofender este ou aquele grupo. Porque é difícil empatizar com uma agressão que se desconhece. É ainda mais complicado colocarmo-nos na pele de quem sofre a agressão porque, felizmente, não a temos de enfrentar. Em cada e qualquer saída de casa. Mas é imperativo que se perceba efetivamente esta nossa limitação enquanto seres humanos para entender. Que algumas pessoas sofrem na pele agressões sucedâneas. Na paragem do autocarro, na passadeira com o sinal vermelho, na fila do supermercado, no departamento de Finanças, nas urgências do Hospital. E que estas não são nem micro-agressões nem têm de ser vistas como hipótese de crescimento pessoal.
“Em Portugal nada disto acontece“, pensamos muitas vezes. No meu Portugal tudo isto acontece. É verdade, tal como Pedro Marques Lopes termina (e bem) a sua análise, que a mudança de legislação sozinha não vai provocar mudanças de mentalidade e trazer tolerância onde ela não parece querer existir. Mas de facto, estas acusações de assalto à liberdade de expressão e constante vitimização daqueles que querem fazer cair o politicamente correto são mais perniciosas do que façam inicialmente entender. E fazem exatamente o contrário. Dividem aqueles que muitas vezes lutaram do mesmo lado da barricada. Colocam em cheque esse apoio e criam desentendimento entre os que tinham a uma chance real de se entender. E se isso não é tão ou mais perigoso do que qualquer Trump não sei o que será.
Fonte: Diário de Notícias
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