Um casal de abutres gay adota uma cria. – O que vem a ser isto?

Uma notícia veiculada nos jornais nacionais e internacionais há alguns dias dá conta de que, no zoo de Amesterdão, um casal de abutres gay (risos ….) chocou um ovo e, por fim, adotou a cria que dele nasceu. Mas o que vem a ser isto, afinal de contas? Uma piada da natureza, não? Ele há cada coisa.

Mas o mais interessante, é que este caso não é único, muito menos inédito. Passou despercebido da comunicação social que um caso desta natureza, com contornos muito semelhantes a este, aconteceu, ou acontece, em lisboa, no nosso zoo tão fofo, há já vários anos. Não tem grande interesse, mas mesmo assim vamos conhecer um pouco mais a vida deste casal.

Estes abutres gay viviam com grande desejo de ser pais, não podendo procriar, apesar dos esforços nesse sentido. Diz-se que um deles tinha um cargo muito bom na autoridade tributária, mas é mentira. Trabalhava na emel e cumpria um horário bastante simpático, podendo dedicar-se à família com muito empenho. Quanto ao outro abutre, tinha um trabalho um pouco mais desregrado. Era jornalista do correio da manhã e, por isso, tinha horários mais difíceis, nunca sabendo a que horas poderia sair do trabalho e regressar a casa, no zoo. A vida do casal gay era muito dinâmica fora do trabalho, porque tinham muitos amigos e gostavam muito de conviver. Em especial, adoravam, ao fim de semana, sair pela zona do príncipe real com um casal amigo de urubus bichérrimas, para uma bela refeição em conjunto. Eram de tal forma unidos e, diga-se a bem da verdade, batidos por aquelas bandas, que se deleitavam com as ex conquistas uns dos outros, dando uso ao ditado “bicha feita, bicha morta” – eram as chamadas “falecidas”. Refeições deliciosas. Passavam horas nisto e depois juntava-se às 6 ou 7 da matina, no jardim do príncipe real ou na praça das flores a lamber os seus bicos, plenos de satisfação. Esse outro casal amigo de urubus gay, a quem eles chamavam carinhosamente urubichas também não tinham filhos. (Por falar, estes retorquiam o epíteto carinhoso, chamando ao casal de abutres, as suas abutrichas). Não é lindo? Este casal gay que fumava umas brocas volta e meia (abasteciam-se de pó de giz na baixa, até terem encontrado um fornecedor de material de primeira no reptilário) era feliz e andava muito por fora do ninho, num belíssimo armário luís xvi.

Foi então que, num solarengo dia de primavera, eles souberam que tinham conseguido uma cria abutrinha para adoção. Mudou completamente a vida deles. Passaram a ser muito mais um casal hetero, só que com dois machos. Revezavam-se na caça diurna para trazer papinha fumegante, fresquinha ainda e acabadinha de quinar, para o ninho. A cria, que assim era bem alimentada, ia nascendo feliz e contente. Uma minhoca gorda flácida agora, uma lasca de músculo fétido daqui a pouco, um cu de franga amanhã, a vida ia correndo bem às abutrichas e ao abutrinho. Às vezes iam passear em conjunto num voo rasante pela etar de alcântara, onde adoravam ficar deitados a apanhar sol e a admirar o céu de lisboa. Só ficavam um pouco mais tensos quando pairava algum drone. Felizmente ainda não havia muitos e pela zona da etar de alcântara era raríssimo.

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Para não me alongar muito na vida privada deste casal de abutres gay, vou só revelar uma circunstância que não é de somenos, na vida de um casal gay-hetero. Dada as suas posições de certo estatuto na escala socioeconómica da sociedade abutre portuguesa, quando o nosso “piqueno” abutrinho chegou à idade de ir para a escola, logo a família se atarefou na escolha do estabelecimento de ensino da cria. As crias dos abutres, urubus e demais espécies amigas, andavam todas em colégios privados, alguns com contratos de associação. O governo tinha cancelado alguns desses contratos e o casal ficou mais alarmado ainda quando lhes disseram que a sua cria teria que ir, provavelmente, para a escola do zoo, pública, e onde até estavam as crias das araras e das catatuas. Esse foi um período muito agitado e nem se andaram a alimentar nada bem (iam muitas vezes de fato de treino comer a sítios de junk food, embora pedissem sempre tudo mal passado – há mínimos!). Felizmente conseguiram uma vaga num colégio privado na lapa, ainda com contrato com o ministério, conhecido por lá frequentar uma cria de uma hiena famosa que trabalhava no setor da energia. Ui, que excitante!

Por fim, acho estranho que este caso tenha passado despercebido dos media, mas talvez o facto de um dos abutres do casal gay trabalhar no meio, possa ter influenciado. Enfim. Desejo muitas felicidades aos abutres gay de Amesterdão. Vou tentar ir ao batismo da cria, que acho que se vai realizar com alguma pompa num dique de águas paradas da cidade. Olha … ali é que eles arranjavam fornecedores de primeiríssima qualidade, talvez até melhores do que os do reptilário.

 

Troca de chip. O que vem a ser isto?

Trocando o chip para as coisas mais sérias, é interessante ver nestas notícias o reforço que a natureza dá à luta contra a homofobia e a uma visão mais alargada da sexualidade humana, que assim bebe inspiração da sexualidade dos animais. É, não é?

Não, não é infelizmente. Não é mesmo nada, para mim, que não sou sociólogo, ou antropólogo, ou mesmo biólogo. O argumento biológico é frequentemente usado para, assinalando casos de canídeos (os mais frequentemente apontados como sodomitas, isto é, os culpados do costume), argumentar que a homossexualidade é comum na natureza e que, consequentemente, não é estranho ou não natural ver dois homens ou duas mulheres que sentem atração sexual entre si ou que se relacionam em termos amorosos (sim … às vezes conseguem chegar a exemplos em que os animais constituem família). Para melhor esclarecer, não me refiro à questão da parentalidade biológica versus parentalidade adotiva. O argumento biológico aqui representa a tentativa de explicar, ou fazer compreender melhor, a homossexualidade através de relatos de casos de espécimes não humanos que acasalam ou constituem família.

Ora, creio que, em primeiro lugar, nem os homens se inspiram na sodomia dos cães ou dos cavalos (credo, que violência!), nem as crias de abutres se inspiram nos casais de pessoas do mesmo sexo que felizmente existem nos humanos. Estão-se nas tintas se a natureza biológica lhes dá legitimidade ou não para agirem como entenderem ou seguindo os seus instintos ou desejos e aspirações. Não vejo por que razão a natureza não humana (sim … os humanos são parte da natureza) poderia legitimar mais ou menos a homossexualidade. Se a homossexualidade existisse só nos seres humanos? Seria menos legítima por isso? Ou viriam depois dizer os homofóbicos que era melhor não, para não desencaminhar as restantes espécies? Não fossem elas querer imitar-nos.

O espécime humano foi capaz, numa longa e lenta evolução de centenas de milhares de anos, de se libertar, em termos sociais e emocionais, até físicos, da dita natureza puramente biológica ou bio-inspirada, moldando a sua própria existência a todos os níveis. Não estamos a falar, como no caso das referidas espécies, de casos pontuais, ou mesmo sistemáticos, de prática sexual ou de constituição de famílias de seres do mesmo sexo, ou de sexo variável e mutável, a uma escala básica. A sociedade “humana” é infinitamente (talvez um exagero técnico) mais complexa do que isso. E até agora foi capaz de criar mecanismos que permitem que o conceito de família, de sexualidade, de identidade e, talvez sobretudo, mas seguramente muito, de parentalidade evoluam no sentido da criação de inúmeros modelos parentais, diversos, inesperados, funcionais ou não funcionais, experimentais ou anarcas. Este é, possivelmente, um dos maiores desafios da atual sociedade que terá aos poucos que se adaptar à enorme diversidade existente neste domínio, na prática, mas também na teoria.

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Daí que o argumento da biologia como fonte inspiradora dos modelos de orientação sexual, de identidade de género, familiar ou de parentalidade sofrem de profunda miopia, por ignorar a enorme construção social que vai muito para além da genética ou da biologia. Facilmente também encontramos na natureza, em espécies não humanas, comportamentos que rejeitamos para nós humanos, e nem por isso gostamos menos dessas espécies, muito menos dos seus espécimes que, por vezes, também adotamos para nossas casas e personificamos.

Um casal de abutres gay que adota uma cria e cuida dela é ternurento e fofo, e pode ser mostrado às crianças e aos adultos como mais um instantâneo de diversidade, mas não legitima (nem o contrário) nenhuma escolha minha em termos de modelo familiar e parental. Nem tão pouco legitima a minha homossexualidade. O que legitima a minha homossexualidade é a minha natureza, humana. Vejam lá as diferenças.

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