Naquela que se revelou ser a primeira entrevista presencial do Fado Bicha, o frio da noite impôs-se sobre Lisboa. Ainda estávamos, eu e o Nuno, ressacados dos Prémios Arco-íris que tinham contado com uma performance de Lila Fadista e João Caçador, e tínhamos bem presente a ovação que receberam no final da cerimónia a ecoar por todo aquele espaço, quente e repleto de pessoas. Mas naquela esplanada alfacinha as pessoas eram poucas e o frio muito e por isso, quando o Tiago e o João chegaram, sentámo-nos numa mesa junto a um aquecedor que teimava em não fazer frente àquele vento gélido.
E talvez também por isso nos aproximámos, uns aos outros, ali reunidos para falarmos da identidade cultural – e transgressora – que é o Fado em Portugal; para falarmos das Divas portuguesas como Amália ou Gisela João; mas igualmente – diante de chá, vinho, café e imperial, quatro mundos distintos ali simbolizando a nossa diferença na união – para falarmos do que é, afinal, ser-se Bicha. Assim foi:
Pedro: O Fado faz parte da identidade cultural portuguesa, onde encontramos muitas das nossas grandes divas nacionais e, ainda assim, faltava-lhe uma perspectiva LGBTI. É neste contexto que surgiu o Fado Bicha. O que se propõem cantar que não tenha sido cantado antes, ou, por outras palavras, a quem estão a dar voz?
João Caçador: Essa pergunta é muito interessante, nunca tinha pensado sobre essa perspetiva das Divas do Fado serem Divas da sociedade em geral. A própria expressão Diva é uma coisa muito bicha! No Fado sempre houve artistas, músicos e poetas da comunidade LGBTI… só que nunca se falou abertamente e explicitamente sobre isso, nunca foi dada existência poética a estas expressões de amor não normativas. O Fado é vida e por isso tudo pode ser matéria-prima para as suas temáticas. Fala-nos sobre o dia-a-dia da cidade, só que havia um dia-a-dia de um grande número de pessoas que não era falado ou retratado.
O Fado Bicha vem ao encontro disso e cruza-se em última análise com as origens do Fado. O Fado sempre foi bicha. Bicha no sentido marginal, aquilo que é pejorativo que socialmente vem de baixo, da rua. Inicialmente no meio das prostitutas, dos marinheiros, dos faias, o Fado gerou-se nesse ambiente mais boémio e clandestino da sociedade. O Fado Bicha vem dar forma a esse regresso às origens para os dias de hoje, porque havia muitas pessoas que não se reviam nas histórias que o Fado dito tradicional apresentava, porque nunca houve uma história entre dois homens ou duas mulheres e muitas vezes elas eram até escritas por poetas homossexuais. Estava na hora de alguém dar voz a estas narrativas!
Outra parte importante são as pessoas que não se reveem em nós, no sentido em que também queremos criar um projeto em que misturamos algo que faz parte da identidade cultural nacional e da nossa pessoal e misturá-la com outra vertente da nossa identidade que é o facto de sermos bichas e provarmos que é possível uni-las, que faz sentido, que pode ser bem feito, que pode tocar as pessoas, sejam elas LGBT ou não, e desse modo contribuir para a nossa visibilidade enquanto músicos, artistas, pessoas que criam, que são LGBT e que falam disso e mostram ser LGBT.
No início, quando criámos a página no Facebook, recebemos muito ódio em forma de comentários e de críticas negativas. Uma parte deles veio de pessoas ligadas ao Fado – fadistas ou guitarristas – e muitas delas disseram-nos que “tinham vários amigos gays e lésbicas, conheço vários fadistas gays e lésbicas, vários músicos gays e lésbicas, mas fazem o seu trabalho e não precisam alardear que são gays ou lésbicas”. Mas nós queremos alardear que somos gays, porque isso faz parte.
Ainda ontem enviei-te [ao João] um artigo que encontrei sobre o Pedro Homem de Mello – um poeta português que escreveu muitos fados – que era homossexual, era casado com uma mulher, mas era amplamente sabido que era homossexual. Nesse artigo contava-se que se tentarmos ler com outra luz a homossexualidade latente dos poemas conseguimos entendê-lo. Há um poema que se chama Rapaz Da Camisola Verde – e que também começámos a cantar – e é um poema homoerótico. Havia poetas e fadistas que já faziam parte da comunidade LGBT, digamos assim, mas as coisas que eles faziam não traduziam essa pertença e para nós é importante traduzir essa pertença.
Remorso (Pedro Homem de Mello)
Lembro o seu vulto, esguio como espectro,
Naquela esquina, pálido, encostado!
Era um rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento.
Boina maruja ao lado…
De mãos nos bolsos e de olhar distante
Jeito de marinheiro ou de soldado…
Era um rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.
Quem o visse, ao passar, talvez não desse
Pelo seu ar de príncipe, exilado
Na esquina, ali, de camisola verde,
Negra madeixa ao vento, Boina maruja ao lado…
Perguntei-lhe quem era e ele me disse:
— Sou do monte, Senhor! e seu criado…
Pobre rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.
- Concerto no The Late Birds Lisbon – por Nuno Rêgo
Por que me assaltam turvos pensamentos?
Na minha frente estava um condenado?
— Vai-te! rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado!
Ouvindo-me, quedou-se, altivo, o moço.
Indiferente à raiva do meu brado,
E ali ficou, de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado…
Ali ficou… E eu, cínico, deixei-o
Entregue à noite, aos homens, ao pecado…
Ali ficou, de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado…
Soube eu depois, ali, que se perdera
Esse que, eu só, pudera ter salvado!
Ai! do rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado!
Pedro: Aos poucos, fadistas têm ganho essa consciência, que têm fãs gays, lésbicas, bissexuais e trans, como por exemplo a Gisela João. Sentem que existe essa abertura por parte de profissionais, chamemos-lhes, clássicos? Já houve algum apadrinhamento?
João: Apadrinhamento não, pelo menos oficial. Eu já estava no meio do Fado há alguns anos e bastantes amigos fadistas e músicos. Aquilo que senti que acontece no Fado – mas também de uma forma geral – é que as pessoas têm um pré-conceito do que é o Fado Bicha sem verem, sem ouvirem, sem lerem as letras. E esse pré-conceito é fruto dos estereótipos internalizados que todos no fundo temos, uns mais que outros. Conceber a ideia de um homem com barba vestido de mulher pode ser uma forma de expressão legítima e sustentada é um exercício estilístico que pode não ser acessível a todos.
Em primeira análise salta logo que é um projecto que vem brincar, gozar ou desrespeitar o Fado. Mas depois de uma explicação ou de simplesmente conhecer um pouco mais aprofundadamente as canções, a perspectiva muda completamente, nós não queremos ferir, não queremos desrespeitar ninguém e quando as pessoas percebem que estamos a fazer o Fado mais puro que podia haver – que é cantar a vida e as histórias de pessoas que existem e que são reais – ficam desarmadas.
Quando ouvem o De Costas Voltadas, ouvem a história da não aceitação, ouvem a história da negação do amor incondicional por parte de muitos pais de pessoas LGBTI. E é quase impossível ficar indiferente a um poema desses, porque não se fica indiferente a um sofrimento tão visceral como este.
De Costas Voltadas
Maria do Rosário Pedreira / Alfredo Marceneiro (Fado Pagem) – adaptação de Lila Fadista
Nunca fui o que quiseste,
Fui sempre o que não gostavas,
Deitei fora o que me deste,
Pedi-te o que não me davas
Fui abraço dormente
E beijo amargo limão
Fui um filho sem ser gente,
Mão que é prego noutra mão
Fui de promessa perdida
E rosto que não se encara –
Dor que não chega a ser ferida
E até por isso não sara
Fui noites sem madrugadas,
Cuidado sem afeição
Estamos de costas voltadas
Do berço ao caixão.
Pedro: … acham que de certa forma estão a abrir caminho?
João: Acho que estamos a rebentar caminho [risos]!
Nuno: Acham que a temática LGBT inserida em algo tão tradicional pode mudar a mentalidade ou preconceitos de algumas pessoas mais conservadoras e resistentes à evolução legislativa e cultural da última década?
Lila: Não sei se pode, a arte sempre teve um papel importante nesse processo, não é o único vetor de mudança, mas sempre foi historicamente um dos vetores de mudança sobre vários aspetos. Por isso e à partida acho que poderá contribuir para isso. Acho que o que fazemos, e pegando no que o João estava a dizer, sendo feito com verdade e emoção – que é como gostamos de fazer – acho que pode tocar as pessoas de uma maneira que o discurso ativista ou político não consegue, porque não joga com elementos racionais, mesmo que sejam de direitos humanos, mas joga com coisas muito mais básicas.
Por exemplo, decidimos cantar o “De Costas Voltadas” quando fomos à televisão porque queríamos que fosse uma coisa que nos prestigiasse enquanto ideia fundamental, que fosse mais difícil de nos ridicularizar e de nos caricaturar e que pudesse de alguma forma tocar as pessoas mesmo que elas não tenham nenhuma ligação com as narrativas LGBT, mas que se conseguissem ligar à verdade daquela história que é sentires uma rejeição absoluta, inabalável e insanável por parte dos teus progenitores. Acho que pode ser muito por aí, o meu aspecto quando estou em palco, já por si, é repelente para muitas pessoas – eu tenho noção disso -, ainda mais porque eu não sigo um padrão de drag clássico e isso, curiosamente, ainda repele mais as pessoas, incluindo as que estão dentro do meio LGBT.
Recebemos algum ódio também de homens homossexuais e de travestis, seguindo termos e padrões de ódio homofóbico, como a palavra “aberração”. Até agora não conseguimos ainda perceber bem se é por começarmos a ter visibilidade – mas não me parece que seja isso -, se é por eu fazer um drag que não é esteticamente aquilo que essas pessoas consideram o expectável, se é por acharem promíscuo fazermos isto e ao mesmo tempo cantarmos fado… ainda não conseguimos perceber… mas acho que é pela verdade das canções que nós podemos ter esse impacto que perguntaste. É por isso que queremos apostar em ter músicas originais e escritas por nós que consigam fazer esse trabalho e que passem a nossa experiência e a das pessoas à nossa volta, porque é isso que queremos representar.
- Concerto no The Late Birds Lisbon – por Nuno Rêgo.
Nuno: Talvez sejam pessoas mais velhas que vos veem como que a ‘pisar-lhes os calos’. Na realidade há conservadorismo no próprio meio e a questão vinha nesse sentido, se tentar conquistar pessoas que normalmente não estariam abertas a este tipo de temática através de uma forma que lhes é familiar como o Fado. Embora no presente já seja algo falacioso, a verdade é que durante muito tempo o Fado era associado a pessoas mais velhas, mas com a nova geração de fadistas esse paradigma mudou. Acham que isso pode ser uma porta para o Fado Bicha?
João: Quando começámos não pensámos nisso, fizemos fado porque nos identificamos com este género musical. O problema é que à partida são ambientes contraditórios, porque uma pessoa mais velha, por mais que goste de Fado, vai chocar com a nossa parte estética, e esse choque desperta muitas emoções fortes nas pessoas, precisamente, porque gostam muito de Fado [risos].
Pedro: A emoção vai estar ainda mais concentrada quando vos vê…
Lila: Sim, é isso que nós sentimos, não só porque é um estilo musical muito amado pelas pessoas que gostam, ou seja, as pessoas que gostam, gostam mesmo muito e defendem muito e protegem muito um grupo de características que associam ao Fado puro, como se tivesse sido sempre assim desde o início e não tivesse havido mudanças nenhumas desde a sua génese. E depois, para além disso, não só é um estilo de música muito amado, como é muito interligado com a identidade de um país. Isso acaba por ter um peso muito forte na maneira como as pessoas se relacionam a inovações dentro do próprio Fado e há fadistas com imenso sucesso, mas que na comunidade do Fado são detestados, porque introduzem inovações, porque cantam de maneira diferente…
João: E neste caso até é mais profundo porque a progressão que fizemos está ligada a uma coisa que é altamente pejorativa. O termo bicha, juntar Fado com Bicha, é a pedrada no charco!
Lila: Ainda no outro dia estava a falar com uma amiga, que foi fotógrafa nos Prémios Arco-Íris, as nossas famílias são da mesma aldeia, e quando fomos à televisão deu-se o meu coming out geral lá e toda a gente ficou a saber que eu estava a fazer isto e ela estava a dizer-me que tinha falado com a mãe sobre este projeto. Perguntei-lhe o que ela tinha achado. Respondeu-me que a mãe tinha gostado muito, que achava que cantava muito bem, só não gostou de nos chamarmos Fado Bicha, ao que eu respondi “é precisamente por ela não ter gostado que nós nos chamamos Fado Bicha” [risos].
João: É pegar num termo pejorativo, apadrinhá-lo e torná-lo nosso. Bicha é à partida depreciativo, indigno, aquilo que se pretende é também mostrarmo-nos bichas orgulhosas que cantam as suas histórias e a sua verdade.
Lila: É a apropriação do termo. Nós usamos a palavra bicha, mas não são apenas homens, ou homens que se vestem de mulher ou ainda homens femininos, uso a palavra bicha neste contexto para falar de um grupo de pessoas que não são normativas em termos de identidade de género e orientação sexual e que vivem da forma que podem e conseguem, que vivem a sua verdade. São todas as pessoas da nossa comunidade e simpatizantes que apoiam a causa da visibilidade e da verdade…
João:… da bicha corajosa, que dá a cara!
Pedro: Há pouco falaram do conservadorismo que existe dentro do Fado e lembrei-me de uma história em que, quando a Gisela João foi criticada por ter gravado o Senhor Extraterrestre, ela teve que explicar que esse fado era original da Amália.
João: A Amália na altura também foi muito odiada. Na história da arte, tudo o que entra em ruptura, tudo o que é fraturante com o passado cria essas reações.
Pedro: Atuaram recentemente nos Prémios Arco-Íris 2017 e, após a vossa performance, receberam uma forte ovação. Senti as pessoas – tal como eu, aliás – a vibrarem convosco. Qual a emoção desse reconhecimento naquele palco em particular?
João: Eu nunca tinha ido aos Prémios Arco-Íris, mas é engraçado que quando fazemos as coisas nunca percebemos as dimensões que vão ter. Tenho que confessar que não íamos cantar a Crónica [do Maxo Discreto; acima] e mesmo no soundcheck não a ensaiámos, mas depois percebemos que a Crónica fazia sentido ser ali cantada e, de repente, teve a maior ovação e para nós não é necessariamente um sentimento de aprovação, mas sim de que a mensagem chegou, que estamos no caminho certo, que mexe com as pessoas e que aquilo que nós idealizamos chega às pessoas.
Lila: Já vou aos Prémios Arco-Íris há muitos anos e aquilo que disse quando estive lá em cima – que estar naquele palco não era muito diferente de estar na plateia (claro que era diferente…) – mas, de certa forma, senti com a reação das pessoas como se estivesse também a bater palmas, ou seja, senti uma sensação de comunhão com aquelas pessoas que são ou apoiam a nossa comunidade, que lutam por isso, que se orgulham umas das outras e que fazem por avançar os nossos direitos e o nosso bem-estar. Mas como disse, nós começámos nem há um ano e eu fiz teatro durante muitos anos mas nunca tinha cantado desta maneira, então é tudo novo, a maneira como me relaciono com as pessoas que estão a ouvir. Não temos restrições. Estava super-nervoso antes de entrar em palco, mas depois entrei e vi aquele público, pensei que nós nunca tínhamos atuado para tantas pessoas.
Quando vi aquela plateia toda – é engraçado, porque eu estava com muito medo, mas é como quando olhas de frente para aquela coisa que te mete medo de frente e depois… depois, é só ação [bate palmas com as mãos] e fiquei uma leoa.
- Bastidores dos Prémios Arco-Íris 2017
Pedro: O Fado Bicha é ainda um projeto jovem, em crescimento, têm algum sonho, alguma ambição quanto ao futuro que nos possam desvendar?
Lila: Vamos gravar o primeiro single, porque achamos que pode ser importante para dar visibilidade ao nosso projeto. Mas gostávamos de continuar a cantar, cantar noutros pontos de Portugal. Vamos ter o primeiro concerto fora de Lisboa, em fevereiro, em Leiria [risos]. Pessoalmente, gostava muito que algumas pessoas do meio do Fado fizessem algo connosco. Obviamente, seria um reconhecimento artístico e do valor do projeto, mas também seria muito bom para o objetivo ativista do Fado Bicha, acho que isso poderia ser mesmo uma pedra de toque e dar-me-ia imenso prazer que isso acontecesse… principalmente se fosse a Gisela… [risos]
João: … ou a Carminho…
Lila: … ou a Aldina Duarte!
João: Mas, sim, uma coisa que me fascinou desde pequenino era a rádio e acho que um dia ouvir o Fado Bicha na rádio, estar no carro e ouvir Fado Bicha. Acho também muita graça irmos um dia ao interior de Portugal, irmos a Bragança e ver o que acontecia. Um palco no Portugal profundo, era capaz de ser um contraste muito interessante. Fado Bicha no Gerês [risos].
Pedro: Para terminar, alguma mensagem que queiram deixar a quem nos ler?
Lila: É a versão programa da tarde agora [risos], “o que dizem os teus olhos?” [risos].
João: Queremos convidar as pessoas a virem ver-nos, a falarem connosco e a tocarem-nos. Gosto desse contacto, do falar, do tocar. Tocam-nos pouco [risos]!
Nuno: Essa vai ser a manchete! [risos]
João: A frase escolhida: “Tocam-nos pouco!” [risos]
- Concerto na Base dos Engenheiros do Acaso
Nota: Obrigado ao João, ao Tiago, ao Nuno e ao Zeh por todo o feedback e ajuda 🙂
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