Queerbaiting: há um grande problema na ficção (e temos de falar sobre isso)

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É uma problemática badalada quando se fala em ficção, um assunto recorrente quase sempre que sai uma nova série, um novo filme, um novo livro. É um receio latente no seio da comunidade LGBT quando se fala em representação: há aquela ínfima possibilidade de que essa concretização de material queer seja um isco, e de que os autores estejam só a fazer queerbaiting.

Mas o que é o queerbaiting?

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Queerbaiting acontece quando os autores de uma história ficcional colocam subtexto LGBT suficiente numa história para manter os fãs LGBT interessados, mas depois nunca acabam por confirmar as personagens como queer.

É, no fundo, uma maneira muito fácil de agradar a gregos e a troianos: colocam pequenas pistas nas histórias, que façam os fãs LGBT continuarem a seguir com a esperança de que vá haver algum tipo de confirmação, mas não confirmam nem dão uma resolução a essas pistas – mantendo, assim, também o interesse do público mainstream potencialmente homofóbico, que lhes boicotaria a história e o negócio se fossem confirmadas personagens gay.

Além disso – e é aqui que entra uma das partes mais labirínticas do queerbaiting – é muito fácil um autor ou showrunner negar que fez queerbaiting.

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Steven Moffat, showrunner de Sherlock e Doctor Who, é uma figura central no debate do queerbaiting pelas piores razões. Mas já lá vamos.

Imagina que és um showrunner de uma série e te acusam de andares a fazer queerbaiting com duas personagens: podes simplesmente dizer “o quê? Isso são coisas da vossa cabeça! Então uma personagem não pode olhar para outra sem serem gays? Não, nós não demos a entender nada, vocês é que interpretaram assim!“.

E isto, claro, é uma extrema falta de respeito para com as pessoas. É fazê-las investir o seu tempo e dinheiro em algo, implicitamente a fazê-las acreditar que a história as vai representar e ter uma storyline queer, mas depois dar umas quantas guinadas para trás e não tomar responsabilidade pelas sementes que lançaram.

Queerbaiting e victim blaming: um cocktail molotov de tudo o que há de mau

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Há muito quem desafie esta noção de que o problema reside nxs autorxs, nxs showrunners, com o argumento de que a culpa é, na realidade, das pessoas que são apanhadas na rede do queerbaiting.

O argumento pode-se condensar como “então, a culpa é das pessoas que só vêem uma série ou um filme ou lêem um livro por causa dos personagens queer. Porque é que estão a consumir ficção só para ver se há personagens queer, e não pelo enredo, pela qualidade da escrita, pelo worldbuilding?

E a isso, eu às vezes só me apetece responder mal.

É claro que uma pessoa LGBT vai querer apoiar material LGBT ou potencialmente LGBT: as pessoas gostam de apoiar aquilo que as representa, aquilo de que gostam e, além disso, as histórias dependem do seu sucesso – leia-se sucesso financeiro. É um mundo capitalista: as séries só continuam se houver gente a vê-la. Os livros só são publicados e traduzidos se houver pessoas a comprá-los e a lê-los.

A comunidade LGBT sabe que a única maneira de chamar a atenção das produtoras e das editoras é acertando-lhes onde lhes importa: na carteira. A melhor maneira de passar a mensagem “invistam em conteúdo LGBT” é fazendo do conteúdo LGBT um sucesso financeiro.

Além disso, durante muito tempo o conteúdo ficcional queer foi um grande tabu; as companhias, produtoras e editores não investiam nele, e uma pessoa que quisesse introduzir representação nas suas histórias tinha de o esconder sob camadas e camadas de subtexto.

E é com este conteúdo que a comunidade LGBT de hoje cresceu: conteúdo onde tinha de se procurar pelas pistas, ver aquilo que estava a ser escondido pelxs autorxs das próprias pessoas que xs financiavam, como uma piscadela de olho do outro lado da sala. Portanto, quando uma pessoa LGBT vê este tipo de subtexto, este “dar a entender”, a primeira coisa que pensa é “não lhes deixaram, mas elxs estão a tentar. Talvez se dermos força suficiente a isto, elxs consigam tornar isto explícito, representação a sério“.

E dão força. E apoiam. E depois revela-se um isco – showrunners e autorxs oportunistas a aproveitarem-se do senso de comunidade para fazerem dinheiro.

Vamos apontar dedos

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Sobrenatural é um dos casos mais notórios, e que explodiu mais na sua época: não é segredo nenhum que a série teve um boost de audiências nas temporadas 8 e 9 que, incidentemente, foram as que se focaram mais na storyline da relação de… “amizade” entre Dean e Castiel. No entanto, quando inquiridos, os showrunners sempre negaram que esta relação tivesse algum tipo de inclinação romântica – isto, apesar de todos os sinais que os fãs LGBT estavam a interpretar como obviamente românticos, e os paralelismos entre a amizade das personagens e algumas das inclinações românticas que Dean já tivera.

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Outro caso também notório foi o de Sherlock da BBC, cuja core audience era maioritariamente adolescentes (especialmente raparigas) LGBT. A relação de Sherlock e John era a mais próxima e mais explorada da série e, mais uma vez, os fãs LGBT notavam algum subtexto. Isto, aliado às declarações de Steven Moffat, showrunner de Sherlock, de que considerava a representação importante, e do facto de ter falado de cenários românticos hipotéticos num painel da Comic Con que depois vieram a espelhar em interações das personagens na série, deixou os fãs com toda a fé e esperança.

Mas no San Diego Comic Con de 2016, Moffat afirmou que tornar Sherlock queer seria “trivializá-lo”; Mark Gatiss, o outro showrunner, adicionou ainda que a ideia de uma relação entre John e Sherlock tinha sido “inspirada por uma piadola por Billy Wilder no filme The Secret Life of Sherlock Holmes”, que eles decidiram usar como uma piada circunstancial na série. E acrescenta que talvez o facto de a terem usado demasiadas vezes pode ter dado a ideia errada aos fãs; mas que não, não iria acontecer. Nunca.

Um exemplo divisivo é o de Harry Potter: Dumbledore foi confirmado como gay pós-canon, numa talk que J. K. Rowling deu em Carnegie Hall. Para muitos fãs, isto foi simplesmente um momento de oportunismo por parte da autora: pela teoria da Morte do Autor, tudo o que é dito pelo autor fora do universo das histórias não é canon. Não é válido como parte delas. Portanto, durante muito tempo, os fãs estiveram à espera de uma confirmação dentro das histórias do Wizarding World que canonizasse Dumbledore como gay.

E esta oportunidade parecia estar prestes a apresentar-se com o anúncio do mais recente filme da franquia: Fantastic Beasts and Where to Find Them: The Crimes of Grindelwald, um filme que teria Dumbledore como personagem central, e o seu ex-interesse amoroso como antagonista. Certamente isto iria ser explorado no filme?

Não, veio dizer David Yates, realizador de Fantastic Beasts. A sexualidade de Dumbledore não iria ser explorada no filme. Ficava só “no coração dos fãs“.

É aqui que entra a parte do “divisivo”: tecnicamente, Dumbledore já foi confirmado como queer; mas quando chega a hora de introduzir a parte queer da personagem no grande ecrã ou nas prateleiras das livrarias, a vontade de incluir representação LGBT parece desvanecer-se. E os fãs vão esperando, acompanhando, e sendo levados por um queerbait de onze anos.

E falando em divisivo, eis que temos de mencionar a outra face da moeda.

Queerbaiting ou não-queerbaiting?

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É aqui que as coisas começam a ficar complicadas: é possível as pessoas atirarem a acusação de queerbaiting quando… não há queerbaiting.

Isto porque o queerbaiting é, ao fim e ao cabo, um espetro muito cinzento: lida com interpretações, com contexto, com subtexto, e também é possível que se vá a ver e as acusações sejam compreensíveis… mas infundadas.

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Temos por exemplo Steven Universe, que foi acusado de queerbaiting porque as personagens Peridot e Lápis Lazuli, apesar do desenvolvimento da sua amizade, não se tornaram um casal. O que é uma acusação não só infundada, como extremamente injusta: Steven Universe é a série que teve, com outras duas personagens, o primeiro casamento lésbico da televisão infantil. É uma série criada por Rebecca Sugar, uma showrunner abertamente bissexual.

E porque é que esta salganhada acontece? Primeiro, porque estamos a falar de pessoas, de histórias, de contexto e subtexto e opiniões, e as coisas tornam-se agressivamente subjetivas.

Depois, porque atualmente há uma incidência muito grande no discurso em meio digital, especialmente sobre temas sociais sensíveis, de pessoas que reduzem termos técnicos específicos a uma determinada situação a buzzwords generalizadoras.

Apropriação cultural, por exemplo, é um termo sociológico que levou esse tratamento de choque: é um termo que descreve situações muito específicas em determinados contextos culturais, sociais e históricos – mas pela internet só se vê pessoas a atirar a acusação de “apropriação cultural” sem informação sobre o contexto em que determinadas interações estão a acontecer, a equacionar partilha cultural a redução cultural e a tratar objetos culturais com diferentes aberturas de partilha como se fossem todos iguais.

E esta transformação de um termo específico, que descreve situações de um determinado contexto, numa buzzword que generaliza apressadamente e mete tudo no mesmo saco, acabou por acontecer com o queerbaiting. A verdade é que nem tudo é queerbaiting.

É por isso que temos mesmo de analisar as situações a fundo, e começar a separar as águas. Temos de começar a perceber se as coisas são realmente queerbaiting, ou simplesmente pessoas chateadas porque o casal de que elas gostavam não foi canonizado. Há uma diferença – sim, muitas vezes subtil, porque até o queerbaiting se está a tornar mais refinado – mas é preciso ter calma quando se acusa. Há que ter fundamento, contexto, argumentação.

E o facto de as pessoas confundirem essas duas coisas está a tirar muita, muita força ao debate do queerbaiting: porque agora, criadores que realmente fazem queerbaiting podem esconder-se atrás do argumento do “eles só estão chateados porque não canonizámos o casal preferido deles” – e, enquanto isso, há criadores queer a tentarem realmente, e mesmo assim a serem acusados de queerbaiting, no oxímoro mais frustrante da era moderna.

E sabem o que é que também tira muita força ao debate, e faz com que todos nós pareçamos um bando de lunáticos?

Acusar pessoas reais de fazerem queerbaiting com a sua vida pessoal

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Eu estava a considerar pôr aqui um exemplo prático, mas há pelo menos um ou dois fandoms que me arrancavam o coração pelos joelhos se eu me atrevesse a mencioná-los. Aprecio viver.

Não tenho sequer forças para debater isto. É tão infrutífero. Há malta tão cabeça-dura.

Mas é muito frustrante ver o termo queerbaiting, um termo firmemente ligado a um fenómeno em material ficcional, ser aplicado à vida pessoal de pessoas reais. E isto é um debate que surge amiúde, quando uma ou outra celebridade é apanhada por paparazzi com umx amigx por diversas vezes; quando umx youtuber traz umx amigx para um vídeo e se comporta de forma mais íntima com elx; quando o instastory desta pessoa conhecida está cheio de fotos com esta outra pessoa – mas depois não confirmam a sua relação para com elx.

Pois claro que não confirmam. Não têm de confirmar. É a vida pessoal deles.

A vida pessoal de alguém não é a nossa história de ficção que nós ligamos a televisão para ver, não é a narrativa que um autor pode mudar mediante input dos fãs. É a vida de alguém e, quer eles beneficiem em termos de exposure dessa relação ou não, não têm qualquer obrigação de a tornar pública ou revelar nada.

Não é queerbaiting. São pessoas a tratar a sua vida pessoal com o nível de privacidade que acham que merecem. Por favor, não façam isto.

Concluindo

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No fim, não venho aqui com nenhuma solução ou ideia revolucionária sobre o queerbaiting. É um problema muito delicado, cada caso é um caso, e muitas vezes a resposta encontra-se no contexto.

Não na história em si, mas nos criadores: são notórios por fazerem queerbaiting? Já expressaram interesse em inserir personagens queer nas suas histórias? Se até agora só fizeram histórias sem personagens LGBT, o que é que os fez começar agora? Boa-fé, vontade de começar ou oportunismo?

E as pessoas que os acusam ou a uma história de queerbaiting? Que argumentos é que apresentam? Não fazem generalizações apressadas? Não estão só tão fartas de queerbaiting, que estão a julgar uma situação demasiado rápido? Não estão só a ser polarizadoras?

E é manter o debate aberto. Ainda que às vezes apeteça bloquear uns quantos no Twitter.



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