Anna Calvi: “A cultura está saturada da ideia de mulheres serem perseguidas por homens.”

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Quero ir além do género. Não quero ter de escolher entre o lado masculino e o feminino em mim. Estou a lutar contra sentir-me uma estranha, a tentar encontrar um lugar em que me sinta em casa.

Foram estas palavras que deram mote a Hunter, o mais recente álbum da britânica Anna Calvi, uma coleção de canções descrita pela própria como sendo “primitiva e bonita, vulnerável e forte.” Vamos (re)conhecê-la na suas próprias palavras?

Quando era criança queria ser um menino. Não era apenas uma ideia de apenas usar calções ou brincar com os carros, porque eu fiz isso de qualquer maneira, mas de uma maneira profunda, onde me sentia errada em mim mesma.” No entanto, Calvi esclarece o sentimento: “Eu não diria que sou uma pessoa trans, porque encontrei uma maneira de aceitar esse rótulo que criámos para dizer quem somos. Mas à medida que envelheço, sinto cada vez mais, na verdade, que é ridículo recebermos apenas duas opções. Se o género não se relaciona com o corpo, o que obviamente faz sentido porque uma mulher pode sentir-se como uma mulher ainda que ela não tenha seios. E essa presunção faz cada vez menos sentido para mim.

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Em Hunter, ela cruza essa divisão na canção Chain, uma música dramática sobre um encontro sexual com o refrão: “Eu serei o rapaz, tu serás a rapariga. Eu serei a rapariga, tu serás o rapaz. Eu serei a rapariga.

Mas o seu interesse não se remete apenas à identidade pessoal, a cultura social é igualmente um dos tópicos do seu álbum e da sua expressão artística: “A nossa cultura está saturada da ideia de mulheres serem perseguidas por homens. Por isso queria dar uma nova narrativa da mulher como uma caçadora que sai e escolhe o que ela quer.” Para Calvi é esta postura que questiona a ideia de que para uma mulher ser respeitada “deve estar quieta e sorrir“, aliás, algo que lhe foi pedido numa sessão fotográfica e ela se recusou fazer, tal como, aliás, abrir as pernas enquanto estava deitada de barriga para baixo, porque, alegadamente, “as mulheres ficam bem nessa pose.”

Talvez inspirada pelas constantes comparações da sua música com PJ Harvey, ela observa que existem diferentes critérios ao avaliar mulheres na música: “Podem haver tantos artistas masculinos fazendo tantas coisas diferentes quanto quiserem, mas com as mulheres a mensagem que recebemos é: só há espaço para uma. Se és uma nova mulher que toca guitarra, então deves estar a copiar uma outra mulher.

E o sentimento não podia ser mais distante desta ideia: “Isto não é uma competição. Acho ótimo que haja vários artistas a fazerem-se ouvir. Há muitos artistas queer que ganham voz, há mais mulheres a questionar o jogo, a questionar por que as mulheres devem apoiar aquilo que elas fazem. Isso é incrível para mim.

Desde que Calvi terminou a digressão do seu último álbum – One Breath, de 2013 e indicado para um Mercury Prize – a sua relação de oito anos terminou, ela conheceu a sua atual namorada francesa e mudou-se para Estrasburgo (o casal entretanto mudou-se para Londres). Tudo isso a levou a explorar os temas que dominam o seu novo álbum: a sexualidade, o feminismo e o género.

A música na qual ela ruge, “Don’t beat the girl out of my boy“, é uma resposta ao sentir-se menos aceite como metade de um relacionamento entre duas mulheres. “Canto de forma muito forte e poderosa para mostrar como defendo esta relação com minha vida. E preciso de toda a força que tenho para invocar esse rugido – não há espaço para pensamentos ou performances. É pura expressão.” E não é por acaso que assim é, Calvi teve que defender efetivamente a sua relação. Quando o casal procurava um apartamento em França, a proprietária de uma das casas, ao perceber que elas eram um casal e não em vez de um par de alunas, recusou-as: “Wow, estas coisas realmente acontecem!

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Concerto no Capitólio, Lisboa, 20 de outubro 2018

Sendo uma mulher que cria música, foi-lhe igualmente perguntada a questão se ela se considerava uma feminista. “Por que alguém não se consideraria alguém que acredita na igualdade?” E explicou que quando ganhamos a sensibilidade para entender a presença do machismo nas nossas vidas “não podemos simplesmente desassociá-lo. Estou a tentar cortar a ideia da masculinidade e  cortar também todas as formas com que as mulheres foram silenciadas. Eu quero ser o oposto de uma mulher silenciada.

E Calvi não esquece como o machismo pode ser igualmente tóxico para os homens, recordando que nem ela nem a mãe viram alguma vez o seu pai chorar. “Que consequências terá isso nele?“, questiona. “Não devemos esperar que um homem seja um super-herói que nunca experiencie sentimentos, porque para sermos verdadeiramente livres temos que ter a hipótese de vivenciar todo o espectro da emoção humana, incluindo momentos vulneráveis e fortes. Por isto, quis ter a certeza de que ambas as vertentes estivessem presentes no álbum.

Este é um disco que gostaria de ter ouvido em adolescente. Teria sido útil! Como uma rapariga estranha, não tive realmente um modelo, uma mulher-modelo que fosse mais do que socialmente uma mulher deve ser. Precisava olhar para uma mulher imperfeita, animalesca, impaciente e confusa, e todas essas coisas que as mulheres são, mas são tornadas invisíveis pela sociedade.

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Fontes: Standard, iNews e BuzzMag.

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