
Durante décadas pensámos que a indústria cinematográfica de Hollywood teria perdido a inspiração. Ano após ano, víamos as mesmas histórias no grande ecrã, as mesmas adaptações, as mesmas pessoas. Mas nos últimos anos algo começou a mudar: com #MeToo e #BlackLivesMatter começou finalmente a perceber-se o quão patriarcal era a indústria, também totalmente desenhada para as mesmas pessoas – homens cis brancos heterossexuais – ganharem o poder e tomarem todas as decisões. E muito rapidamente também percebemos o quão silenciadas todas as restantes pessoas são, obrigadas a prostrar-se perante a vontade de outrem e verem as suas histórias também elas invisibilizadas.
Não é coincidência que este ano temos várias mulheres na realização de vários filmes que têm vindo a ser os mais celebrados do ano e teremos possivelmente mais que uma única exceção à regra na categoria de realização dos Óscares. E uma delas é Emerald Fennell. Se calhar o nome não é estranho às pessoas mais atentas: é a atriz que, entre outras coisas, interpretou Camilla Parker Bowles na série “The Crown”. Em “Promising Young Woman” assina o argumento e a realização desta longa-metragem, a primeira vez que desempenha qualquer uma dessas funções. Fennell tinha o conceito já preparado desde 2017 e vendeu os direitos do filme a Margot Robbie e à sua produtora, LuckyChap, depois de descrever a cena de abertura.

E que cena de abertura é. Começa num bar perfeitamente lotado, já perto do final da noite, em que três amigos vislumbram uma rapariga totalmente bêbada sentada a um canto, sozinha e claramente a precisar de ajuda. Dois deles querem imediatamente levá-la para a cama, aproveitando-se da sua vulnerabilidade, mas o terceiro, o ‘nice guy,’ não os deixa e corre em seu auxílio. Chama um Uber para a levar a casa, mas, entretanto, e apesar de ela não concordar, decide ir para o seu próprio apartamento. Tenta atabalhoadamente vários avanços que ela, embriagada, continua a rejeitar até finalmente a levar para a cama e começar a despi-la e a tocar-lhe nos genitais. “O que estás a fazer?” pergunta ela inúmeras vezes com a voz totalmente minada pela intoxicação alcoólica. “Hey. Eu disse: O. Que. Estás. A. Fazer?” diz uma última vez. Totalmente lúcida. O desejo nos olhos dele muda imediatamente para medo puro, percebendo que ela estava apenas a fingir e perfeitamente ciente do abuso que ele estava conscientemente a perpetrar sob uma mulher alcoolizada.

O tom está definido até porque “Promising Young Woman” é um thriller com laivos de comédia negra e, no seu âmago, um revenge movie. Carey Mulligan é Cassie, a protagonista, a mulher que finge embriaguez em bares para castigar os homens bondosos que a pretendem ajudar e inevitavelmente acabam por abusar dela. Ou tentar. Sem querer revelar muito, cedo percebemos que houve um evento na vida de Cassie que a fez interrompê-la totalmente, deixar a universidade de Medicina e voltar para casa dos pais. Não vou revelar mais porque o argumento é tão bom e tão exímio na forma como vai revelando Cassie, o seu trauma e necessidade de vingança que iria estragar revelando qualquer pequeno detalhe.
Posso, no entanto, dizer que nunca vimos um filme assim. Nunca vimos o abuso descrito desta maneira, com todas as consequências unicamente para as mulheres que sofrem o abuso e nenhumas para os homens que os cometem. Nunca vimos uma mulher tão implacavelmente a promover a sua sede de vingança e payback, uma característica tão pouco feminina e tão própria de um homem. Nunca vimos esta antítese de heroína desempenhada com uma frieza desconcertante e simultaneamente uma vulnerabilidade absolutamente devastadora, numa interpretação de Carey Mulligan que ficará para os anais da História ao lado de Beatrix Kiddo e Carrie White.
É que “Promising Young Woman” não é só um mero murro no estômago. É um que deixa marcas durante, pelo menos, largas horas depois de o ver. Numa nota pessoal, senti-me fisicamente enjoado durante umas horas depois de ver o filme. O poder da narrativa e da forma como ela é apresentada por Fennell e Mulligan é desconcertante do início ao fim, na forma como vemos a deceção de Cassie esvair toda a sua alma para ser nada mais que um objeto de vingança. O desmoronamento do ‘nice guy’ do seu tóxico pedestal é particularmente visceral e revoltante e ficamos com a sensação que #NotAllMen é definitivamente a punchline do século. Mesmo que eles saibam “Stars Are Blind” da Paris Hilton de cor. ESPECIALMENTE se eles souberem “Stars Are Blind” da Paris Hilton de cor.
Nota: Texto revisto pela Ana Teresa.

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