Num sábado de Páscoa particularmente aborrecido, sem visitas covidianas e com algum mau feitio em cima – qualidade da qual, aliás, não abdico –, dou por mim a olhar para a minha pequena coleção de livros infantis: a única secção da minha estante que mantenho intacta desde que me rendi à magia do e-reader.
Muitos destes livros foram comprados em Madrid, em livrarias feministas com secções infantis absolutamente incríveis e invejáveis. Outros (poucos) em português, a maioria da Joana Estrela, por quem sou secretamente apaixonada. Tenho a certeza que coraria se nos cruzássemos na rua.
Um desses madrilenos chama-se Vacío, da autora Anna Llenas, muito conhecida em Portugal pelo seu famosíssimo livro O Monstro das Cores. Não há ninguém que conviva diariamente com crianças que não conheça este sucesso de vendas.
Vacío, na língua original, e ainda sem tradução em português, conta a história de uma menina de cartão chamada Júlia, que vive pacatamente num tranquilo bairro com a sua família. Um dia, e de um momento para o outro, é fulminada por um enorme vazio. Júlia rapidamente percebe que o grande vazio que sente é como um buraco negro por onde tudo passa. E que, por mais que procure nas coisas e pessoas à sua volta, não encontra nenhuma tampinha com o tamanho ideal para o encerrar.
Tenho bastantes livros infantis de temática LGBTI. Uns sobre famílias arco-íris, outros sobre pessoas diversas nas suas vivências e identidades. Felizmente, são cada vez mais os livros (uns melhores e outros piores, vá) com histórias onde cabem todas as crianças e não apenas algumas. Os Vestidos do Tiago, de Joana Estrela, é um desses bons exemplos da minha coleção – e prometo não a referir novamente neste texto. Mas Vacío não é um livro de temática LGBTI. Ou será?
Embora me seja relativamente simples falar sobre questões LGBTI com crianças de jardim de infância e 1.º ciclo, ainda não consigo arranjar tampinhas perfeitas que tapem os vazios das crianças que por mim passam.
Em 7 anos de trabalho em educação, a minha principal preocupação sempre foi a de construir ambientes em que todas as minhas crianças estivessem felizes e seguras. Ora, quem trabalha em educação, e tem um pingo de responsabilidade ou inteligência emocional, sabe que esta tarefa é hercúlea. Primeiro: todas é muita gente. Segundo: felizes e seguras não depende só de nós. No entanto, trabalhei sempre por um ambiente diverso e inclusivo: mesmo com pais e mães zangados e zangadas ao portão, sem perceber porque raio o seu “filho macho” chegou a casa de unhas pintadas de livre vontade.
Entre livros, conversas e atividades inclusivas, fui criando espaço para que as crianças e pessoas adultas com quem trabalho se sentissem felizes e seguras na escola. Ou, pelo menos, no meu espaço-escola.
E é por isso que regresso tantas vezes ao livro da Anna Llenas. O meu objetivo enquanto educadora não é tapar os vazios das minhas crianças, mas sim torná-los mais pequenos. Um vazio pequeno permite a passagem de tristezas e medos, é certo, mas também permite a passagem de palavras, e desenhos, e cores, e músicas, e pessoas. E talvez — talvez com sorte — esta mistura mágica faça a diferença.

Ep.167 – Tina Turner, Mariana Mortágua, Saúde Feminina e Não-Binarismo no México – Dar Voz a esQrever: Notícias, Cultura e Opinião LGBTI 🎙🏳️🌈
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