Este é o texto que não esperava escrever, e por isso nem sei bem por onde começar. Chegou-me ontem de madrugada a triste e desconcertante notícia do falecimento do Paulo Gustavo. Quis muito deixar umas linhas para demonstrar o reconhecimento e para que nunca o esqueçamos. Mas mesmo agora, ainda me é difícil escrever sem que a garganta se feche num nó apertado e os olhos fiquem marejados de lágrimas. Foi um dia triste para o Brasil, que tanto o acarinhava, acredito que a perda se projeta em toda a dimensão da língua portuguesa. Perdemos um ícone da cultura. Não consigo traduzir por palavras a tristeza que se abate dentro de mim com esta perda, demonstrativo desse estado de espírito apenas a dificuldade de escrever estas palavras.
Para quem não estava muito familiarizado com o nome, Paulo Gustavo foi um brilhante ator brasileiro, exímio no campo da comédia. Nos palcos era impossível a sua presença passar despercebida. Pela sua graciosidade, bondade, generosidade, genialidade, gentileza, pelo seu sentido de humor capaz de arrancar uma gargalhada até do ser mais carrancudo. Pela forma simples, descontraída, bonita e verdadeira com que encarava a vida. Dentro e fora de cena. Conheci o trabalho do Paulo através da sua obra mais famosa, a inesquecível dona Hermínia dos filmes “A minha Mãe é uma Peça”. Fiquei rendida no primeiro minuto. E falando a um nível muito pessoal, foi uma história muito importante na minha vida. [Spoiler Alert] A personagem principal, dona Hermínia, teve como inspiração a mãe do ator. Nos filmes assistimos à história de dona Hermínia e dos seus três filhos. Quando digo que a trilogia me marcou falo sobretudo do que diz respeito ao Juliano, o filho mais novo de dona Hermínia. Isto porque o Juliano é homossexual. Este tema da homossexualidade, coming out e relação familiar é retratado com uma graciosidade ímpar. Tão cómico, tocante, humano e empático. Acho difícil ficar indiferente a esta história, sobretudo quando se faz parte da comunidade LGBT.
Sentindo-me tocada com esta história, decidi acompanhar as aventuras da dona Hermínia com a minha mãe. Depressa desenvolvemos um afeto muito grande por aquela personagem e pelo próprio Paulo Gustavo. De quando em vez lá vinha um vídeo novo da dona Hermínia nas mensagens que troco com a minha mãe. Para além de não ser difícil gostar da personagem, as semelhanças entre a personagem e a minha mãe são inegáveis. Entre brincadeiras, comecei mesmo a chamar-lhe dona Hermínia nos momentos em que está mais inspirada a reclamar. Numa dessas alturas, entre risos, ela pergunta-me “se eu sou a dona Hermínia, tu quem és? A Marcelina?”, na onda da brincadeira, mas com alguns nervos à mistura respondo “Não, sou o Juliano, óbvio”. E desde esse momento, meio implícito meio declarado, entre palhaçadas, fomos abordando um assunto que nos era difícil a ambas. Foi tratado com muita simplicidade e carinho, tal como nos filmes.
Quando soubemos do internamento do Paulo, trocámos mensagens e expressámos a nossa preocupação, fruto da afeição que lhe temos. Nos últimos dias as notícias que nos chegavam não eram animadoras. E o pior veio mesmo a confirmar-se. Com o desaparecimento do Paulo Gustavo perde-se não só um artista incontornável nas artes performativas, mas um ser humano extraordinário. Em 2017, o Paulo Gustavo doou cerca de um milhão e meio de reais para a construção de um centro de tratamento de cancro, já em plena pandemia doou recursos a fim de serem comprados os equipamentos necessários para a testagem do covid-19. Além desse lado filantropo, era também uma voz ativa na luta pelos Direitos Humanos, em particular questões relacionadas à comunidade LGBT e ao feminismo. E fazia tudo isso com tanta humanidade, inteligência, empatia e generosidade. Não tive o privilégio de privar com o Paulo Gustavo, mas a admiração e gratidão que lhe tenho, bem como a tristeza que sinto neste momento, são demonstrativos no impacto que a sua presença tinha. Um obrigada nunca será suficiente. Estou profundamente solidária com toda a família, amigos, e milhões de fãs (tal como eu) que sentem esta perda. Paulo Gustavo faleceu aos 42 e anos, no dia 4 de Maio, estando internado desde dia 13 de Março, devido a complicações relacionadas com a covid-19. Tornou-se um marco da comédia brasileira deixando, ainda que curto, um bonito legado para as gerações vindouras. Tínhamos ainda muito para ver da dona Hermínia. E tanto para aprender com o Paulo Gustavo.
No estado de espírito de profunda tristeza, revolta e indignação que se apodera de mim, foi o que consegui escrever.
Muito, muito obrigada, Paulo Gustavo!

Ep.178 – Pessoas trans e terapia hormonal, LGBTI de férias e… Visibilidade Bissexual! – Dar Voz a esQrever: Notícias, Cultura e Opinião LGBTI 🎙🏳️🌈
O Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️🌈 está disponível nas seguintes plataformas:
👉 Spotify 👉 Apple Podcasts 👉 Google Podcasts 👉 Pocket Casts 👉 Anchor 👉 RadioPublic 👉 Overcast 👉 Breaker 👉 Podcast Addict 👉 PodBean 👉 Castbox 👉 Deezer
Grande texto Amélia, enorme Paulo Gustavo! Quem como eu tem amigos brasileiros aqui em Portugal e no Brasil provavelmente sabe da importância que o Paulo teve nos momentos de partilhar, a primeira vez, a orientação sexual com familiares, amigos e todxs. O Brasil é muito mais que São Paulo e Rio de Janeiro, há um brasil imenso, conservador, abandonado economia, cultural e educacionalmente, misógino, homofóbico e racista. O(s) filme(s) de Paulo Gustavo, tendo sido transmitido em televisão aberta e em horário nobre, foi uma lufada de ar fresco em muitas famílias bafientas. Ajudou muito a “normalizar” situações familiares, ajudou muitas mães (e alguns pais sejamos honestos) a olharem de outra forma a orientação sexual dxs filhxs e ajudou a diminuir um pouquinho o preconceito e os estereótipos. Frases como “A gente te ama, a gente tem medo de te ver sofrer na rua mas aqui em casa a gente segura as pontas e vai te ajudar” fez muita gente repensar o que pode fazer para ajudar adolescentes e jovens em processos de tomada de consciência pública da orientação sexual e de afirmação social.
Casos como o de hoje: “Adolescente enviou carta contando a vizinhos que era agredido pelo pai por ser gay: ‘Não aguento mais’ ” => https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2021/05/07/adolescente-enviou-carta-contando-a-vizinhos-que-era-agredido-pelo-pai-por-ser-gay-nao-aguento-mais.ghtml acontecem diariamente em todo o mundo, não devia mas acontecem. Ainda há um longo caminho a percorrer e o Paulo sabia disso.
Precisamos de mais ‘Paulos Gustavos’ para que cada vez haja menos adolescentes de 14 anos a escreverem que “sinto que não presto para ninguém” e mais casos como este de um jornalista da Globo News que agradece ao Paulo durante a emissão => https://twitter.com/gugachacra/status/1390312164695711746
Escola, cultura e informação é poder, e, o Brasil, assim como aqui em Portugal, precisa de comida na mesa, de trabalho, de um SUS (sistema brasileiro de saúde pública universal) a funcionar, mas também precisa de pessoas, jornalistas, atores e autores que mostrem o seu trabalho LGBTQi+ em televisão aberta no horário nobre, pois ainda é essa a forma mais abrangente para chegar a mais famílias e diminuir a violência e a homofobia, nem todxs têm internet ainda. A natureza humana tende a ‘normalizar’ aquilo que conhece e vê regularmente, para o bem e para o mal, o Paulo Gustavo foi para o bem!!
Façam silêncio! Rezem por ele! Ou será pedir muito?! Não instrumentalizem a morte de um pobre homem para exaltar a vossa “triste causa”. Sejam ao menos inteligentes…