Entrevista ao Coletivo Afrontosas: O mundo artístico em Portugal continua a ser fechado, restrito e com privilégios marcados pelo seu passado colonial

Entrevista ao Coletivo Afrontosas: O mundo artístico em Portugal continua a ser fechado, restrito e com privilégios marcados pelo seu passado colonial
Lançamento do Coletivo Afrontosas, Espaço Alkantara 20/04/2023
Na foto: antonyo omolu, DIDI e ROD
Créditos: @nomadagrafia

O Coletivo Afrontosas é uma nova Associação Cultural que nasceu a partir de encontros de pessoas negras queer – ou cuír, como veremos mais à frente. Estas são pessoas ligadas ao mundo das artes, da educação e da celebração, num país pautado pela ausência de projetos que reflitam sobre a importância da negritude queer da diáspora.

É neste sentido que surge uma conversa com o coletivo para entender os seus objetivos e nuances do contexto artístico e educativo de pessoas lgbtqia+ negras em Portugal:

Recentemente criado em Portugal, quais os principais objetivos do Coletivo Afrontosas?

A frase da Linn da Quebrada pode te ajudar a compreender um pouco acerca dos motivos que nos levaram a criar o Afrontosas: “Ser bicha não é só dar o cu. É também poder resistir” Assim, nossos trabalhos conversam, bem como o nosso trânsito em Portugal, a partir de nossas vivências como pessoas cuír – negre – imigrantes – artistas. Era natural que juntássemos nossa força criativa e habilidade, alinhando nossas atividades, em meio ao cenário de carência no campo da arte, performance, celebração e academia Portuguesa, nos assuntos que atravessam nossas ações.

Com foco no mundo das artes, da educação e da celebração das identidades das pessoas negras, há desde logo uma desconstrução que referem: a expressão “cuír”. Querem explicar as razões que vos levaram a escolher esta grafia?

Cuír é um neologismo que decidimos usar como forma de demarcar nossa expressão enquanto coletivo. No Brasil, de onde a maior parte do Afrontosas vem, a palavra cuír tem sido usada como forma de estabelecer uma posição no mundo sobre a resistência decolonial de pessoas lgbtqia+. Uma forma de subverter essa ideia da palavra “queer” como algo indefinido, esse grande chapéu que serve para tudo, mas que no final continua sem significado. Pessoas estranhas? Pessoas de gênero diverso? E quando falamos de pessoas negras cuír? Cuír é uma manifestação de insurreição contra as tentativas de aprisionamento de pessoas não-hegemônicas dentro de certas categorias.

Coletivo Afrontosas: ROD, antonyo omolu e Carol Elis

O cuírlombismo se apresenta como estratégia comunitária. Seu objetivo é construir territórios que dê sentido às práticas artísticas e às leituras interseccionais da negritude. O cuírlombismo providência interferências nos diálogos com artivismo, resistência e performance. Ele fomenta o trabalho coletivo por uma luta antirracista face à invisibilidade de nossas corpas e a falta de representação nos espaços tradicionais da arte, da cultura, da academia, da política e da esfera civíl.

Na imagem: ROD, antonyo omolu e Carol Elis na Exposição Coletiva “Mood Queer / Ser Cuír”, Palácio Cabral, Junta da Freguesia da Misericórdia. De 18 a 30/06.
Créditos: João Baah.

O cuír, em português do Brasil e fora de um contexto norte americano hegemônico ( branco-binário), traduz a conceituação negro-fundamentada de uma negritude diaspórica dissidente-sexual. Traduz ainda a tentativa da criação de comunidades que se alimenta de uma matéria-prima própria diante das escassas referências sobre nossa história e nossa resistência, resultado das tentativas coloniais de apagamento de nossa existência física, subjetiva e literária, como bem fundamentou a escritora e pensadora cuír negra Tatiana Nascimento.

Podemos falar numa indefinição identitária, eventualmente promovida pelos EUA em Queer, mas que está longe de representar as vidas e vivências de pessoas negras no resto do mundo (e em particular no Brasil e em Portugal)?

É evidente que o nosso trânsito, que se estabelece pelas nossas vivências e referências, como de outras pessoas negres em/de Portugal são dissonantes de um contexto norte americano, que sempre foi base de uma cultura gay e posteriormente queer. As nossas identidades atravessam os poros de Marsha P. Jonhson como um todo, mas aproximam-se diretamente de um diálogo com corpas presentes no nosso convívio diário e que alimentam o componente de saber, de referência, de admiração, que passam de Jota Mombaça, por Jenny Larrue, por Puta da Silva, por Jorge Lafon e tantas outras pessoas que colaboraram e colaboram para definição de algo que é indefinido (a definição pode ser uma armadilha para determinar o que não é rotulável) e que passa por constante transformação.

Como vêem a realidade em Portugal no que toca às expressões artísticas, à sua divulgação e à representatividade de identidades e contextos minoritários?

O sistema da arte em Portugal continua a ser um ambiente fechado e restrito, com privilégios marcados pelo seu passado colonial. Embora já existam algumas poucas iniciativas que procuram dar conta de uma falta de representatividade de pessoas negras dentro deste setor, ainda é gritante como o comando dos meios de produção da cultura, da arte e da educação em Portugal continuam nas mãos do mesmo grupo de pessoas. Quando fazemos um recorte interseccional em termos de raça e identidade de gênero, isso se torna ainda mais evidente.

Não há pessoas negras na liderança de instituições ou em projetos destes setores, muito menos pessoas negras lgbtqia+. O que presenciamos é uma tentativa de manutenção do poder das pessoas brancas a partir do uso das pessoas negras como um símbolo de diversidade. Trata-se apenas de uma lavagem de consciência para criar uma sensação de que os tempos de reparação já começaram. Isso não é verdade. Falta em Portugal a criação de novas posições de lideranças nesses setores que deem espaços para nós, pessoas negras e pessoas negras lgbtqia+ decidirem o que fazer. Nesse sentido, o Coletivo Afrontosas chega com uma vontade de não só chamar a atenção para estas falhas históricas, mas também de elaborar estratégias culturais que nos permitam desenvolver projetos com autonomia.

Em pleno Mês do Orgulho LGBTQIA+, que mensagem querem deixar às cuíres que nos lêem?

Percebemos que nos últimos tempos, por reconhecemo-nos no meio de uma pequena multidão, temos criado forças para simplesmente sermos o que podemos ser, vivendo aquilo que podemos viver, alimentando laços e tecnologias de cuidado que ultrapassam os olhares cegos de uma multidão, nos fazendo presentes, vivas e dignamente, afrontosas. Sejam afrontosas!


Poderão descobrir e contactar o Coletivo Afrontosas no seu site e Instagram.

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