“Mate o homem. Mate o branco. Mate o amor”: como Linn da Quebrada virou o meu Mundinho do avesso

Sinto que há pouco menos de um mês vivia debaixo de uma pedra. Figurativa e bem menor do que a de há cinco anos quando enveredei pelo caminho do ativismo e microscópica comparativamente à de há dez anos quando estava profundamente armariado. Mas nestes caminhos da luta pelos direitos e pela igualdade caímos muitas vezes num facilitismo de pensamento e de abordagem aos assuntos, não considerando muita vez a caixa que está fora da caixa. Que já estava fora de outra. E para mim Linn Da Quebrada foi a derradeira caixa de Pandora.

Conheci-a efetivamente, e não de ouvir falar de amigos (quase sempre em tom de extrema euforia) no mês passado durante o encerramento do Queer Lisboa com “Bixa Travesty“, (que vai ser exibido HOJE na sessão de abertura do Queer Porto no Teatro Rivoli) uma espécie de documentário transformado em manifesto de Linn da Quebrada e da sua viadagem trava em busca de novas mulheridades. Esta palavra ouvi-a no ontem pela primeira vez da boca da própria durante uma conversa na Galeria Zé dos Bois em Lisboa, juntamente com a companheira Jup do Bairro, em jeito de rescaldo da passagem por Portugal depois de se apresentar no Porto e no Barreiro e dar a conhecer um novo espetáculo “Trava Línguas” em Lisboa, anunciado de surpresa apenas dois dias antes.

Fui ver este novo espetáculo com expetativas extremamente elevadas, tamanha foi a receção dos concertos anteriores. Mas “Trava Línguas” é um monstro à parte que só levemente toca no repertório que conhecemos. Trata-se de um conceito totalmente novo de concerto sem pausas, música ininterrupta com a mensagem e a voz de Linn ainda mais no centro dentro. Poderia aplicar novamente a palavra manifesto se ela não fosse provavelmente totalmente adversa a ela. Ela não quer ser idolatrada nem seguida cegamente. Não se trata de uma legião de fãs mas uma legião de irmãs. De armas.

Porque já estamos em guerra. E não fazer nada é fazer algo. Algo muito positivo para o outro lado da barricada. Na conversa da ZDB muitas vozes se insurgiram a certo momento para gritar “Ele não”, a propósito dos resultados deprimentes de Bolsonaro na primeira volta das eleições brasileiras. Mas ela logo ripostou que tínhamos de deixar de gritar “Ele Não” e dar-lhe poder desta forma. O paradigma tem de ser totalmente mudado e a raiva usada enquanto força motriz para transfigurar o grito de guerra para “NÓS SIM“.

Porque nada é mais poderoso que os nossos corpos. E a exploração incessante mas frutífera desses corpos no sentido de os assumir como mais do que vemos em determinado momento no espelho. Eles, e a nossa identidade, estão em constante mudança e não podem ser sempre a mesma coisa. Para bem da sociedade e nosso sofrimento. Não. Esta descoberta vai além de qualquer discussão de binaridade, orientação sexual ou raça. Durante o concerto Linn proferiu as seguintes palavras, enquanto se metamorfoseava fisicamente em palco: “Mate o homem. Mate o branco. Mate o amor”. Este cruel mantra foi uma facada nas entranhas. É fácil entender que temos de arruinar a ideia da superioridade de género e racial para erradicar o patriarcado. Mas o amor? “Torna-nos dóceis“, disse em conversa. E continuou a explicar que o conceito tradicional de amor e família serviam para manter-nos acorrentadas. Presas ao sistema e por Ele escravizadas. Novamente. Como pessoas queer temos oportunidade de redefinir esta noção de amor e criar ligações de outra forma, mais aberta e em jeito de verdadeira sororidade.

É muito difícil voltar ao mundo convencional depois de viver a utopia sanguinária e pornográfica na forma como se explora o corpo de Linn da Quebrada, sem género, sem raça, sem definições. Nada parece fazer mais sentido e as regras pelas quais nos regíamos antes tornam-se ocas e bacocas. Mas a raiva que fica é mais que bélica. Surge como uma voz que desperta de um âmago profundo e reprimido por séculos de opressão. E essa voz é ensurdecedora. E. Não. Se. Vai. Calar. Nunca.

Audio Completo da Conversa na Galeria Zé dos Bois “A Canção como uma Arma”