Para o grande público, Hedwig and the Angry Inch, o musical que em 2014 ganhou um par dos prestigiados Tony Awards, era uma das novidades que emergia vitoriosa da panóplia de espectáculos que ocupam um infindável número de teatros na zona da Broadway de Nova Iorque. Apenas um número reduzido de pessoas sabia que na realidade este êxito surpresa já ocupava um lugar de culto desde 1998, quando o actor/dramaturgo/cineasta John Cameron Mitchell estreou-se no papel.
Hedwig é uma talentosa mas menosprezada cantora transexual oriunda de Berlim Oriental, antes da queda do muro. Depois de uma atribulada operação de mudança de sexo forçada pelo seu amante, um militar americano, fugiu para os Estados Unidos em busca de uma vida de sonho que nunca se materializou. A génese desta personagem deu-se durante a infância de Mitchell, ele próprio filho de um general do exército, mudando de casa e país recorrentemente, entre os quais a Alemanha.
O musical com hipnotizantes canções punk pop de Stephen Trask, esteve em cena Off-Broadway durante dois anos e depois de 900 performances, teve a sua adaptação para o grande ecrã pela mão do próprio John Cameron Mitchell em 2001, que lhe valeu a atenção do circuito de festivais de cinema independente e uma série de prémios, incluindo uma nomeação para um Globo de Ouro. No entanto só em 2014 e com o star power do ascendente Neil Patrick Harris é que o musical ganhou o destaque merecido na Broadway com um revival absolutamente explosivo e acutilante.
Aquando de uma primeira visita a Nova Iorque, que tem a capacidade devastadora de transformar a forma de nos vermos enquanto seres integrantes de uma sociedade marcada pela diferença, tive também a sorte de conhecer Hedwig. E conhecer Hedwig é ganhar outra perspectiva sobre como se deve definir identidade ou, simplesmente, como temos de deixar de o fazer. Existe apenas uma forma errada de vivermos a nossa vida: a que requer a repressão a essência primordial do que nos torna únicos. E Hedwig é ela própria, sem desculpas nem compromissos. Prefere morrer como é do que viver como quereriam que fosse.
Hedwig foi-me apresentada na pele de um actor mais jovem que todos os outros (que também já incluíram Michael C.Hall de Dexter e Sete Palmos de Terra) que calçaram os seus tacões e usaram as suas fabulosas perucas, Darren Criss. Mais conhecido enquanto Blaine da série Glee, Criss, já bem conhecido nos palcos da Broadway, é uma das caras mais visíveis e frontais da aliança heterossexual na luta dos direitos LGBT. E a sua vitalidade, juventude e rebeldia trouxeram à tona um lado de Hedwig ainda mais irreverente, crasso e insolente, bem diferente da sensibilidade mais narcisista e frágil de John Cameron Mitchell.
Mas Hedwig não é uma personagem fictícia, é uma possessão angélica. É difícil ver alguém por detrás da maquilhagem e da ferocidade que devora o palco e o público, seja ela na forma como se pavoneia em palco e destrói a cenografia sem remorsos ou como constrói a sua narrativa no intervalo das canções. E ambas casam-se de forma tão perfeita que não parecem existir individualmente. É impossível ouvir “Sugar Daddy” ou “Wicked Little Town” sem pensar nos momentos chave da metamorfose de Hansel, adolescente alemão que se tornou na força da natureza Hedwig.
E a viagem em que nos leva é perfeitamente estonteante. Se começa com um humor ácido e politicamente incorrecto a mostrar as garras afiadas com que se agarra desesperadamente à vida e à fama que nunca alcançou, acaba de forma totalmente traumatizante quando vemos Hedwig despir-se de todos os artifícios e aceitar a sua outra parte, tão bem simbolizada na mitologia da criação da sexualidade de “The Origin of Love”. Toda a sua vida tentou encontrar a metade que lhe faltava nos homens que conhecia, quando no fim, percebeu que essa dualidade vivia somente nela. E da tragicidade absolutamente desumana que marcou toda a sua vida, repleta de injustiças e azedume, surge das cinzas do fogo que ateou para se destruir e fazer brilhar uma nova Luz. Talvez Ela já não seja suficiente para salvar Hedwig mas está disponível para nos salvar a todos nós. Levantem as mãos e recebam-na. Jamais serão os mesmos.
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