Adopção: A (In)Consciência de Francisco Mendes da Silva

Francisco Mendes da Silva, deputado do CDS e comentador/moderador do programa Sem Moderação do Canal Q, publicou no seu Facebook a declaração de voto que apresentou na Assembleia da República “na sequência da votação dos projectos de lei  relativos à adopção por casais do mesmo sexo”. Comecemos, então, a análise à dita cuja:

 

“Em Plenário realizado no dia 20 de Novembro de 2015, a Assembleia da República discutiu os projectos de lei n.os 2/XIII, 5/XIII, 11/XIII e 28/XIII, todos tendo por objectivo a eliminação da impossibilidade legal de adopção por casais de pessoas do mesmo sexo. Votei contra a sua aprovação pelas seguintes razões:

 

1 – Considero que as relações que se estabelecem entre pessoas do mesmo sexo são em princípio tão susceptíveis de criar situações estáveis e duradouras, de tipo familiar, quanto as que se estabelecem entre pessoas de sexo diferente. Considero que tais relações são dignas de reconhecimento social e tutela por parte do Estado, sendo credoras de um processo de progressiva equiparação, quanto ao estatuto jurídico, às relações entre pessoas de sexo diferente. Sou a favor da manutenção da possibilidade legal do casamento entre pessoas do mesmo sexo, contra o qual não encontro na sociedade portuguesa, actualmente, qualquer movimento sério. Esta circunstância constitui um elemento de interpretação do sentimento colectivo sobre estas matérias que não pode deixar de ser relevado pelo legislador.

Nada poderei acrescentar a este primeiro ponto que concordo plenamente: sim, as relações entre pessoas do mesmo sexo podem criar laços estáveis e duradouros, essenciais à criação e manutenção saudável de uma família. Como tal, é dever do Estado proteger estas famílias, adultos e crianças incluídos. Prossigamos:

 

2-  Assim, em princípio não coloco de parte a possibilidade de a adopção por parte de casais de pessoas do mesmo sexo cumprir os objectivos que se pretendem com o instituto da adopção, garantindo um ambiente familiar e de crescimento saudável às crianças adoptadas.

Mais um ponto a favor do deputado, embora aquele “em princípio” me faça temer o pior, mas há que ter esperança na humanidade e achar que as conclusões que são aqui tiradas não serão esquecidas nos pontos futuros. E para reiterar: sim, o objectivo central da adopção é dar a possibilidade de ambiente e crescimento saudáveis às crianças adoptadas.

 

3 – Para além disso, reconheço que a questão inclui uma dimensão que tem a ver com os direitos dos adultos. O processo de adopção depende de uma candidatura dos eventuais adoptantes, o que traduz inequivocamente uma manifestação de vontade, aliás respeitante a um impulso natural do ser humano – o de constituir e viver em família. Esse acto volitivo, tendente à satisfação de um desejo humano básico, gera a meu ver uma expectativa digna de tutela.

Começo a estranhar tanta argumentação certeira, mas, sim, estava implícito nos projectos de lei apresentados pelos partidos de esquerda, que as famílias homoparentais são tão válidas como as hetero e monoparentais. Daí pretender-se que as pessoas LGB possam candidatar-se conjuntamente para a adopção de uma criança (e não apenas a título individual como a lei portuguesa – ainda – permite).

 

4 – No entanto, é indesmentível que não é esse o interesse fundamental do regime jurídico da adopção. O interesse central é o superior interesse da criança. É este que deve ser, sempre, o guia supremo do legislador.

É aqui que começo a ficar realmente preocupado, o uso da expressão “no entanto” e, pior, “o superior interesse da criança” deixam-me logo em modo de alerta. É óbvio que é o superior interesse da criança o ponto central de toda esta questão, mas é-o quer para as famílias, quer para o Estado, ao contrário do que algumas vozes digam para o desvirtuar.

 

5 – Vista a questão a partir desse prisma essencial, existem dúvidas profundas que não consegui ainda ultrapassar. Deve o legislador analisar o problema apenas à luz da relação atomizada entre adoptado e adoptantes ou, pelo contrário, devem ser consideradas também as condições sociais gerais ao tempo da alteração legal projectada? Existe ou não na sociedade portuguesa, já, um sentimento geral que a aproxima dos princípios dos projectos em discussão? Devem os riscos de um hipotético ambiente geral desfavorável sobrepor-se aos benefícios eventualmente decorrentes da mudança na lei? Pode o Estado achar-se legitimado e capaz de, através do poder legislativo, tentar uma mutação da mentalidade geral? Será que neste tema, em caso de aprovação dos projectos, o Estado estaria a reconhecer a existência de uma evolução natural da sociedade ou a instigar artificialmente essa evolução?

Depois de umas manobras tácticas de distração, é aqui que surge o verdadeiro ponto onde Francisco queria, desde o início, atingir: apesar de tudo o que foi dito e escrito nos parágrafos anteriores, a sociedade não está preparada para abraçar estas famílias, como tal o Estado deve demitir-se das suas obrigações legislativas de proteção e reconhecimento das mesmas. Ora, o Francisco como deputado deve, sim, dar o exemplo, e não basear a sua opinião em preconceitos que a sociedade possa, ou não, ter. Porque ao fazê-lo está a alimentar esse mesmo preconceito e – que fique bem claro – a ser tão ou mais discriminativo em relação a estas famílias do que aqueles que diz, do alto do seu posto, serem.

 

6 – Gostaria de ter tido oportunidade para amadurecer mais a minha posição, o que me foi impossibilitado por causas que imputo somente aos partidos autores dos projectos. Com efeito, as regras do debate sério e franco cederam perante objectivos que nada têm a ver com a vontade de esclarecimento e de convencimento leal do adversário. À luz da motivação dos projectos em causa, especialmente sublinhada pelas intervenções no Plenário dos deputados dos partidos proponentes, o que lhes interessou foi tratar a adopção por casais de pessoas do mesmo sexo, exclusiva ou essencialmente, como a eliminação de uma discriminação injustificada entre adultos – pretexto para uma estratégia retórica de desconsideração política e moral dos opositores da alteração legislativa (estratégia essa animada por preconceitos tão irrazoáveis quanto aqueles que os defensores da alteração supõem ser os dos seus adversários). Outro factor que orientou a discussão foi o desejo de os partidos de esquerda marcarem uma posição de força, em nome da promoção da ideia de que existe uma nova maioria política coerente no Parlamento. Penso que isso foi notório, desde logo pelo facto de a discussão ter sido agendada para o início da legislatura, incluída na discussão mais vasta de um conjunto de projectos relativos às chamadas “questões fracturantes”.

O Francisco diz que “gostaria de ter tido a oportunidade para amadurecer mais a sua posição”. Pergunto-lhe então que real interesse teve sobre a questão da adopção por casais do mesmo sexo nos seus 35 anos de vida? Que real interesse teve nas últimas quatro vezes que as propostas de alteração de lei foram levadas a discussão na Assembleia da República (e chumbadas)? O Francisco parece não perceber – ou não querer perceber – que estas “questões fracturantes” são, mais que tudo, urgentes. Porque o que está em causa não são apenas as famílias que surgirão no futuro, mas aquelas que já hoje existem e que estão inseridas na sociedade, mas que a lei portuguesa, até à passada semana, não mostrava passos claros para as proteger. Daí a “pressa”, se assim desejar chamar a este impulso que, recordemos, esteve desde o início nas agendas políticas dos partidos de esquerda e que receberam, quer goste ou não, a votação majoritária do povo português.

 

7 – Disseram os partidos autores dos projectos que não faria sentido esperar mais tempo, tendo em conta que quer a matéria em causa quer outras matérias aparentadas (como a co-adopção) já foram outrora objecto de discussão em sede parlamentar e que, de qualquer modo, existe sobre o tema um grande debate na sociedade portuguesa. Recuso a validade destes argumentos. O debate social é fundamental, certamente, mas também o é a necessária mediação política desse debate, na sede da democracia, por respeito ao estatuto representativo dos deputados. Por seu turno, o argumento de que o debate parlamentar já ocorreu no passado significa que, para os autores dos projectos, a participação dos actuais deputados é negligenciável. E, de facto, conjugando esse argumento com a estratégia política referida no ponto anterior, não sobram dúvidas de que este debate mais não foi do que um resquício ou um prolongamento de anteriores legislaturas, designadamente da última. Trata-se, em boa verdade, de uma desforra de vigésima quinta hora que constitui um desrespeito grosseiro pela instituição e pelos deputados que apenas se estrearam na presente composição da Assembleia.

A “pressa” já expliquei acima, havia unanimidade nos deputados de esquerda – e alguns de direita também – desde o início, digamos que era uma questão de consciência por todas as razões que apresentei eu e, ironicamente, também o Francisco. Mas fico com a sensação, quando oiço falar no adiamento destas questões, que esse compasso de espera é, mais que tudo, uma desculpa para nada se fazer e, mais arrisco até, uma desculpa para alguns nada fazerem e assim poderem virar a cara sem receberem as devidas críticas. Afinal de contas, só precisavam de mais um tempo para ponderar a sua opinião. E entretanto famílias inteiras, pais e filhos, aguardavam à mercê da sua boa-vontade enquanto alguns senhores e algumas senhoras, não faziam mais nada se não ponderar. Basta de procrastinar sobre os direitos destas famílias! Foi essencialmente isto que vimos na votação do passado dia 20.

 

8 – Pelo exposto, decidi em consciência votar contra os projectos discutidos. Não podia viabilizar uma alteração legislativa sobre a qual não formei uma opinião favorável, numa matéria cuja particular sensibilidade não me exigiria menos do que uma absoluta e inabalável convicção.

O Deputado do CDS-PP, Francisco Mendes da Silva.”

Consciência não, Francisco, foi pura inconsciência ter votado contra as propostas de alteração da lei da adopção por casais do mesmo sexo, especialmente depois de todos os argumentos que começou por dar. Os seus últimos pontos só tornam a leitura da sua declaração particularmente amarga, porque ficou claro ter deixado a razão ser domada pelo preconceito em relação a seus semelhantes, àqueles que representa. E isso é algo claramente indigno de um deputado.

Fontes: Facebook do deputado e Twitter do Sem Moderação (imagem).

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