Entrevista A Ricardo Fonseca: “Assumo Quem Sou Sem Qualquer Receio”

Conversámos nos últimos dias com Ricardo Fonseca, um autor que começou a dar os primeiros passos no mundo da escrita através do projecto Partilha’te, publicou três livros e mostra hoje a vertente da escrita como terapia nos processos de ‘coming out’. Assim foi a entrevista que nos concedeu:

Com três obras já publicadas e a participação numa colectânea de histórias sobre homossexualidade, pode-se dizer que a escrita é, para si, uma qualidade que perdura. Como teve início essa simbiose?

Esta simbiose com a escrita começou na minha infância, perto dos 12 anos quando comecei a escrever sobre o que sentia, utilizando a escrita como uma forma de me expressar, de me conhecer.

Naquela altura, comecei por escrever em poesia sobre o amor (que julgava impossível e era secreto), sobre as amizades, sobre a solidão que em parte sentia e posteriormente, fui escrevendo textos em prosa, um pouco mais desenvolvidos consoante as minhas experiências pessoais, onde expressava tudo aquilo que sentia.

Foi através da escrita que comecei a definir a minha forma de ser e a minha forma de amar, de um modo secreto e associado a uma incompreensão da minha parte, sobre se seria correto ou não sentir o que sentia.
A escrita era como uma aliada no meu dia-a-dia, tendo inclusive vários diários e várias cartas trocadas com as amigas e os amigos e aquelas cartas de amor, que nunca tive coragem para entregar.

Confesso que eu a escrita criámos uma simbiose tão profunda, que ela se tornou parte de mim, sendo o escrever um processo essencial para o meu viver.

Posso dizer então que a escrita tem uma componente terapêutica, de auto-descoberta e de auto-avaliação na sua vida?

Bem, quando comecei a escrever foi no sentido de me ler a mim mesmo, de falar comigo mesmo, na ausência de ter com quem falar sobre determinados temas, como a minha orientação sexual.

Assim, fui descobrindo os meus sentimentos, as minhas emoções através das palavras que utilizava para descrever as experiências, para tentar compreender o sentido e o significado de alguns processos, de algumas emoções.

Ao longo dos anos, ao ter vivido profundas e importantes experiências, a escrita tornou-se um pouco diferente, com propósitos mais específicos, sendo que passei a escrever para explorar cada processo emocional com o qual lidei, como as relações amorosas, de amizade e profissionais com todas as suas vicissitudes.

Comecei a reparar que ao escrever estava a percorrer alguns caminhos de cura emocional, ao lidar com as minhas emoções de um modo tão consciente e objetivo, querendo compreender o que sentia e porque sentia de determinado modo e em determinados contextos, pelo que a escrita servia então como uma ferramenta terapêutica para mim, como a minha terapia. Terapia, através da qual me descobria, me avaliava, analisando cada parte do meu Viver.

Essa terapia de escrita é aplicada de que forma nos íntimos processos de ‘coming out’?

A Escrita Terapêutica, a terapia que facilito, pode ser aplicada de diversas formas em processos de ‘coming out’, pois dentro de este processo major, vivemos mini processos, cada um com a sua carga emocional muito intensa e com consequências para o bem-estar de cada pessoa.

Uma das possíveis aplicações pode ser por exemplo, tentar responder à seguintes questão “Quais são as emoções inerentes ao meu processo de ‘coming out’?” e, respostas a esta questão, poderão emergir diversas emoções interligadas com diversos campos relacionais. Posteriormente, associando as emoções às pessoas, aos grupos de pessoas, a escrita pode ser aplicada no formato de cartas, dirigidas aos pais, aos amigos, entre outras pessoas, onde se pode expressar a forma como nos sentimos, a forma como sentimos o Outro que se relaciona connosco e assim, lidaremos, através da escrita, com mini processos de aceitação e de auto-estima.

Há mais formas de aplicação da escrita, como a elaboração de um diário, o escrever sobre o seu processo de forma a poder inspirar e apoiar outras pessoas que estão a viver os mesmos processos. São palavras que podem inspirar palavras, emoções que podem inspirar emoções.

Nessa auto-descoberta através da escrita, houve influência da evolução social que Portugal viveu nos últimos anos em relação aos direitos das pessoas LGBT e na percepção que a sociedade tem delas? De que forma?

A evolução social que Portugal viveu nos últimos anos em relação aos direitos das pessoas LGBT e a percepção que a sociedade tem delas, teve uma certa influência na forma como me manifestava publicamente quer nos afetos quer através da escrita.

Lembro-me de ter refletido muito, quando publiquei o meu primeiro livro, pois apesar de abordar o meu ‘coming out’ de forma discreta, poderia ser um motivo de afastamento dos meus leitores, em especial as pessoas com quem lidava diariamente, como as colegas de trabalho. Ao mesmo tempo, trabalhando na área da saúde, ao assumir publicamente a minha orientação sexual, poderia ser mal encarado por algumas pessoas que ainda vivem com o preconceito.

Confesso que se não tivesse ocorrido esta evolução de mentalidades e aceitação, talvez não assumisse publicamente, pelo menos algumas vezes e em alguns contextos, quem Sou em plenitude!

Hoje, assumo quem Sou sem qualquer receio, sem qualquer preconceito, consciente de que ao assumir e demonstrar como sou e vivo, posso ajudar e contribuir para a continuidade da evolução social em Portugal.

E em todo esse processo surgiu igualmente a participação numa colectânea de histórias de ‘coming out’, entre outras, apoiada pela rede ex aequo, como foi essa experiência?

Verdade, na altura era membro da rede ex aequo, onde cheguei a coordenar um grupo, na altura em Leiria onde morava. Quando surgiu o projeto Partilha’te (assim se chamou a coletânea), nem pensei duas vezes e aceitei o desafio, aceitar participar e partilhar a minha história de ‘coming out’, que mesmo sendo igual a outras tantas, sempre será diferente.

Confesso que foi uma experiência muito positiva, tendo em conta o feedback que recebi de quem leu a história, conhecendo-me ou não e que despertou ainda mais em mim a vontade de escrever e colocar a escrita em prol de quem precisasse de gerir as emoções do seu coming out.

Na altura, também cheguei a dar (em anonimato) uma entrevista sobre o meu coming ou à revista Ativa, para chegar a mais pessoas que, no seu anonimato, precisassem de ler a minha história, para que de algum modo as pudesse ajudar.

E foi esse chamamento de ajuda que impulsionou o lançamento dos livros? Que nos contam eles?

Sim, de facto escrever os livros foi como um chamamento interior, um apelo emocional por perceber a importância que a escrita estava a ter para mim e que, possivelmente, poderia ter para quem lesse o que eu escrevia.
Foi ao mesmo tempo, uma forma de reforçar a minha auto-estima, o meu amor-próprio, depois de os ver diminuídos com algum preconceito que senti inicialmente e, ao publicar estes livros, estava a dizer “Estou aqui, lutei e venci!“.

O primeiro livro “A Chave do Labirinto” e o segundo livro “Calcorreando Percursos” são livros onde constam histórias da minha Vida, experiências emocionalmente muito fortes a nível de relações amorosas, amizades, a nível profissional, ao começar a trabalhar e lidar de crianças com doença crónica, falando sobre as pessoas que me marcaram quer positiva quer menos positivamente e partilhando tudo o que sentia, os percursos que percorri após ter aberto o labirinto!

O terceiro livro “Reflexos” foi escrito de uma forma diferente, numa vertente de desenvolvimento pessoal, onde constam diversas reflexões sobre situações do nosso dia-a-dia, mas que têm uma carga emocional profunda associada, mas que muitas vezes renegamos para segundo plano, porque não queremos conhecer e nem olhar para nós- É um livro, onde as reflexões são todas no formato de questão, para ajudar cada leitor a questionar a si mesmo.

E agora a questão inevitável, já estão delineados os próximos passos, ou melhor, as próximas curvas e contra-curvas de escrita?

Bem, ideias tenho muitas em relação aos próximos passos, porque tenho muitos projetos em esboço, à espera da altura certa para ganharem vida. Por vezes, para escritores que não são “conhecidos”, não é muito fácil editar um livro, mesmo que seja como edição de autor, pois há custos associados e outros fatores.

Mas posso dizer que este ano nascerá o livro “O Semeador de Emoções“, sendo um livro com histórias da minha Vida nos últimos dois anos, muito relacionados com o diagnóstico de uma doença crónica reumática!

O segundo livro, para 2017 será relacionado com a minha convivência com a doença crónica e estratégias de adaptação, tentando e querendo inspirar alguém que possa viver algo parecido com o que eu vivo!

Depois há outras ideias, como um livro de pensamentos, outro com experiências como enfermeiro que cuida de crianças com doença crónica, e outros mais ainda em semente.

E como podem os nossos leitores encontrar o Ricardo e a sua obra?

Podem encontrar-me no facebook na minha página oficial Ricardo Fonseca – Escritor, onde podem encontrar informações sobre os meus livros (incluindo formulário de compra), sobre as atividades da Escrita Terapêutica, entre outras informações acerca do meu trabalho como escritor e terapeuta, além de poderem acompanhar os textos que publico diariamente.

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Nota: Obrigado ao Ricardo pelo contacto 🙂

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