Da classe dos filmes contemplativos, O Ornitólogo é a quarta e mais recente longa-metragem de João Pedro Rodrigues, estreada há dois dias em Portugal, longamente aguardada, e premiada no Festival de Locarno, num aplauso contínuo desde então.
Fernando (Paul Hamy / João Pedro Rodrigues), um ornitólogo, também ele da classe dos contemplativos, está a meio de uma expedição para observação de aves algures nas paisagens do norte de Portugal, nas florestas junto às margens do rio Douro. Ao ser levado pela torrente do rio, o seu caiaque parte-se em dois e Fernando perde os sentidos. É despertado num universo, arrisque-se, paralelo, onde muito vai acontecer. Fernando prossegue viagem neste universo que tem muito de paralelo com a vida de santo António, que partilha com Fernando muito mais do que o próprio nome de batismo.
João Pedro Rodrigues, um realizador há muito seguido pela comunidade lgbt, sobretudo pelos seus trabalhos anteriores – O Fantasma, Odete e Morrer Como Um Homem -, assina esta película que é tão bela e poética quanto desconcertante, numa mistura de David Lynch com Pasolini. Neste universo paralelo são muitas as referências profanas e religiosas, essencialmente centradas na figura de santo António, desde o famoso sermão de santo António aos peixes (citando padre António Vieira), ao percurso solitário, a corda à cintura, o regresso a Pádua e muito mais. Este é um tema revisitado pelo realizador desde Manhã de Santo António, uma curta de 2012.
Foto: distribuição do filme, produtora Blackmaria
Paul Hamy dá corpo a Fernando. É um ator francês que desempenhou vários papéis secundários no passado e que interpreta neste filme o seu primeiro papel principal. Hamy despe-se para a objetiva, de forma tanto figurativa como literal. Literal porque passa boa parte desta viagem nu, naquele que é um exercício magistral de João Pedro Rodrigues da exploração e exaltação do corpo masculino, materializado no ato de contemplação da pele (it’s all about the skin). Figurativo porque Hamy nos oferece um personagem despido de si, na procura de um caminho no qual luta com os seus conflitos internos e que, por fim, eventualmente atinge um elevado grau de serenidade. Hamy deixa-nos ver Fernando de forma próxima e íntima. Despida, portanto.
João Pedro Rodrigues dá voz a Fernando. Melhor seria dizer, João Pedro Rodrigues dá voz a Paul Hamy para que dê voz a Fernando. É o ponto menos positivo deste filme. A voz de Fernando dobrada pelo realizador apresenta alguns problemas de técnica e retira força ao conjunto. Rodrigues grava uma voz pouco emotiva que não serve o propósito na origem desta dobragem. Há uma transfiguração de Fernando, em mais uma referência religiosa, nas figuras de Hamy e Rodrigues, sendo que a voz é sempre a deste último.
Do ponto de vista cinematográfico, a película tem uma fotografia deslumbrante. A representação tranquila da natureza domina todo o filme, mesmo nos momentos de maior tensão emocional. A força e o mistério da natureza estão ali todos, nas aves, nos pios das aves, na água cujo som não nos abandona nunca, na floresta, na luz, nos corpos humanos à luz. O Douro e as suas paisagens são também celebradas por Rodrigues mas a poesia desta fotografia esplendorosa atinge o seu expoente máximo no momento, brevíssimo, dolorosamente breve, em que Fernando repousa junto a uma árvore, na floresta. A sua pele reflete a luz da lua, com uma técnica de chiaroscuro, num quadro muito convincente de Caravaggio.
Foto: “Incredulità di San Tommaso“, Caravaggio
Por último, um ponto fundamental de O Ornitólogo é o seu universo Pasoliniano muito presente. A relação carnal entre homens, o sangue, a sugestão sado-masoquista, a ereção ou mesmo a chuva dourada não deixam margem para dúvida sobre esta crueza nua que ata os corpos a uma sexualidade fremente, falocêntrica. Brilhante.
O Ornitólogo, um sonho de João Pedro Rodrigues a não perder. Para observar aves … e não só.
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