Gorda e Formosa: A Mulher Estofada e a Publicidade

Há alguns anos a marca Dove lançou uma campanha histórica focada na verdadeira beleza. Com certeza lembram-se dos outdoors de mulheres sardentas, com rugas e corpos redondos, diferentes dos que costumam povoar a publicidade. Foi um grande passo para pensarmos na influência que os media têm na forma como as mulheres se vêem e apreciam a si próprias. E é visível que teve efeitos quando hoje ouvimos falar de modelos plus size, mas ainda são denunciáveis os famosos “padrões de beleza irrealistas” – e sempre que estes surgem numa conversa, invariavelmente há alguém que diz “Mas antigamente gordura era formosura!”. Este adágio leva-nos a um passado místico onde, ao contrário de hoje, os corpos rechonchudos seriam o máximo da beleza. E de facto a Arte mostra que o culto da magreza é um fenómeno recente; mas embora haja vários períodos da Arte com mulheres que hoje chamaríamos gordas, seria essa gordura… real? Um dos aspectos intrigantes da auto-imagem é falar-se correntemente na tal “Verdadeira Beleza”, assumindo que existe uma Falsa Beleza, aquela que é produto de airbrushing e Photoshop. Hoje dizemos com segurança que o Corpo Real é que é Belo. Curiosamente, esta oposição Real vs Falso é a mesma que ocupou os artistas de Nus ao longo da História: até que ponto uma imagem do Corpo é uma cópia da realidade, e quando é que essa realidade foi alterada o suficiente para dizermos que já não é um Corpo real, que é uma invenção? A Arte e a Publicidade estão intimamente ligadas por um aspecto fundamental: ambas produzem Imagens. Mas a Arte estava cá antes, por isso vamos olhar os Nus na Arte; aliás, as Nuas.


O princípio da Mulher Nua na Arte dá-se, coincidentemente, no princípio da própria Arte com a Vénus de Hohle Fels, uma mulher de marfim com grandes seios, nádegas e coxas, cuja cabeça, pernas e braços foram reduzidos a quase nada. É a obra de arte mais antiga de todas, com 35.000/40.000 anos de idade e pertence à família de outras Vénus, como a Lespugue ou a mais famosa, de Willendorf – não eram retratos de nenhuma mulher em particular, mas símbolos de fertilidade com um carácter de amuleto da sorte. A mulher era a única que podia dar à luz, e igual a esta fertilidade humana era a fertilidade do solo, que o homem não podia controlar. Portanto, estas figuras não são uma visão machista da mulher mas uma representação visível de conceitos invisíveis, a fertilidade e a abundância; e quem fazia e transportava estas peças chamava-as a si. Para perceber estas imagens também importa perceber a técnica: falamos de um período em que os povos eram nómadas, seguindo manadas de animais para caça, e à procura de bagas e frutos comestíveis; a arte produzida tinha de ser pequena e portátil, e a permanência num local não era longa o suficiente para que se aperfeiçoasse ao máximo o domínio dos materiais. Estas Vénus são muito pequenas: a de Willendorf tem 11 cm, a de Hohle Fels, 5 cm, e a de Monruz tem 1,8 cm de altura! Se as suas formas não fossem tão simplificadas, seriam frágeis e quebradiças – quando as mulheres são pintadas, como nas cavernas de El Cogul, têm cinturas finas porque a linha pintada pode ser muito mais delgada que a matéria esculpida. Portanto, a visão sobre o Corpo Feminino não era sempre a mesma, variando de acordo com a técnica usada, e o contexto económico. À medida que o clima aqueceu e os períodos de sedentarização e estabilidade alimentar aumentaram, esta mudança que se opera tem expressão máxima na escultura das ilhas cíclades; em 2005, Pawlowski e Rozmus-Wrzesinska escreveram no Journal of Biological Psychology que, biologicamente, o tamanho das ancas indica a quantidade de gordura armazenada que pode servir como fonte de energia em caso de escassez alimentar, ao passo que a dimensão da cintura revela informação acerca do estado de saúde e de gravidez. Em sociedades onde a escassez de alimentos deixa de ser um problema premente, afirmam, as ancas perdem importância como atractivo visual e são substituídas pela cintura. Este processo é exactamente aquele que a civilização Cicládica atravessou entre 2700 e 1000 a.C.; no mar Mediterrâneo, com um clima favorável e isolados de ataques inimigos, os ilhéus criaram um novo corpo feminino, mais delicado e subtil; as figuras mantiveram-se estáticas e esquematizadas, mas ganharam mãos, pequenos pés, finos narizes, pescoços bem demarcados, seios mais pequenos e ombros aguçados que curiosamente lembram os blazers enchumaçados dos anos 80. Esta Mulher marca o ponto em que Beleza deixa de ser sinónimo de Fertilidade para passar a ser outra coisa.

Esta “outra coisa” é teorizada no Banquete de Platão. Embora os Gregos tenham feito imenso pelo Nu Masculino, não foram bons artistas de Nu Feminino, porque a sua cultura Clássica, que tratava o homem nu como a perfeição celeste tornada física, tinha as mulheres tapadas dos pés à cabeça quando saíam à rua, e um tabu gigantesco em redor da sua nudez. Platão afirma que uma mulher despida na arena de desportos seria ridícula; Esparta é a excepção escandalosa entre as cidades-estado, a única onde as mulheres competem com os homens, e o exercício físico é recomendado às grávidas. Dado isto, até ao séc. V há poucas imagens de mulheres nuas, e surgem principalmente na cerâmica pintada, em cenas do dia-a-dia. Estas peças eram feitas por artesãos que não dominavam a representação da figura; por isso não costumam ser vistas como “obras de Nu”, por não terem a aura de grandiosidade, ou plenitude, que um bom Corpo Nu tem. Curiosamente, como não são idealizadas, estas mulheres tornam-se muito humanas e enternecedoras na sua simplicidade, quer nas cerâmicas já mencionadas, quer nas bonecas de terracota que não têm, de todo, um corpo “ideal”. O grande problema é a representação da deusa Afrodite. Platão separa dois tipos de Beleza: Venus Coelestis, a beleza espiritual (ligada ao “amor platónico”) e Venus Naturalis, a beleza que é de carne e sangue, que podemos tocar e cheirar, que brota da Natureza. Não sejamos ingénuos, a tão badalada pederastia entre homens e meninos não excluía um facto simples: uma mulher bela é apetecível, ponto. O problema que Afrodite colocava era este: como representar a deusa do Amor sem criar uma imagem porno? O primeiro recurso inventado é a draperie mouillée, o drapeado molhado, que consiste em imaginar o corpo coberto por uma túnica encharcada que se cola à pele, revelando os contornos sem chegar a mostrar o corpo por baixo.

E esta ferramenta funciona até chegarem as influências orientais, da Pérsia e da Ásia; se na Grécia havia um complexo com a Mulher nua, no Oriente não, e a partir do séc. V, quando o Nu Masculino chega ao seu auge, o Feminino começa a ficar imbuído com uma sensualidade nova. A Afrodite de Cnido, a primeira Nua da Arte Clássica, causa um impacto enorme e é copiada vezes sem conta, dando origem a estátuas como a Vénus Esquilina, que não é apenas proporcional como os nus masculinos, com o seu cânone; ela tem cânone mas também é sensual, no verdadeiro sentido do termo: apela aos sentidos, dá vontade de tocar. É suave e graciosa ao mesmo tempo que é compacta e carnuda. Maillol, o grande escultor do séc. XIX, afirmou que conseguia encontrar 300 raparigas iguais a ela na sua terra-natal, Banyuls-sur-Mer. Embora se mantenha algo rígida (Coelestis), vemos que começa a pender para o outro lado, para o Naturalis. A Afrodite de Cnido foi das primeiras a usar o déhanchement, o requebro da anca que tinha sido a marca distintiva do nu masculino: se olharmos para a perna direita vemos que está tensa, e a linha da anca que sobe em arco até ao ventre, contrasta com a outra que ondula suavemente ao longo da perna esquerda relaxada.

Esta posição vai surgir vezes sem conta por toda a Arte Ocidental e para Kenneth Clark era a chave do Nu Feminino, um jogo de formas satisfatório por unir uma linha quase geométrica a um símbolo vívido do desejo, e revelar a relação entre as duas, num único instante de percepção. E o resultado obtido é sempre um corpo suave, generoso, sem perturbações – o efeito Estofado. A visão dominante é a de que o Nu Masculino é movimento, energia e agitação, ao passo que o Feminino deve ser o oposto.

A Idade Média criou um ideal de beleza muito diferente, e é no Renascimento, a partir do séc. XV, quando os artistas começam a inspirar-se nas peças da arte Clássica e Helenística, que a Mulher volta a ganhar os atributos que tivera na Grécia e em Roma. Nos 300 anos seguintes, com diferentes abordagens de acordo com os artistas, o déhanchement, a atitude passiva e o corpo estofado vêem-se em todas as figuras: a Vénus Adormecida (1510) de Giorgione, as Três Graças (1635) de Rubens, ou a Odalisca de Boucher. Gordura é de facto formusura… Mas é uma formosura tão retocada como hoje se faz com o Photoshop; os corpos são alterados para terem as proporções que o artista quis. Estas mulheres não são inteiramente “reais”, porque foram criadas com princípios muito claros em mente. Princípios resumidos em 1794 por Benjamin West, presidente da Royal Academy of Arts em Londres, quando se dirige aos estudantes dizendo que para representar mulheres deviam usar formas “lisas e cheias para indicar a suavidade do seu carácter”, “movimentos lentos e graciosos particulares ao sexo, livres da expressão musculada que é consequência da actividade física.”. É no séc. XIX, com o surgimento do Realismo e mais tarde do Impressionismo, que a visão do Corpo se altera drasticamente. Desde logo com Courbet, que mistura tanto as noções de Real e Ideal, que muitas vezes não percebemos se as mulheres que desenha são uma coisa ou outra. Renoir é um adepto das mulheres cheias, com uma queda para o exagero que as leva a parecerem-se com legumes, ou tubérculos extraordinários.

Estes artistas (entre outros) abriram novos caminhos para a representação da Mulher Nua na Arte Ocidental, mas a restante maioria seguiu as fórmulas criadas sem tentar ir mais além, e a larga maioria dos Nus (masculino e feminino são iguais neste aspecto) agarrou-se à tradição e caiu no formalismo;  Élie Faure chama-lhes bibelots, “esses túmulos da dignidade do artista”.  Não chocam, não agitam nada, basta serem bonitos. Esta gordura, este estofo, era um cânone mainstream que só foi recebido com desaprovação quando tinha outras características que o tornavam chocante – como as prostitutas de Rouault ou as banhistas de Degas na sua privacidade, que não se abrem ao olhar do observador, virando-lhe as costas enquanto se lavam. No séc. XXI a Arte já não é para nós aquilo que foi para os Gregos, que esperavam que o Artista lhes mostrasse o que era o Divino. No séc. XXI já não há Divino para mostrar.


Será este o papel que demos à Publicidade? Se o fizemos foi um erro, porque tal como a Arte Clássica, ela não é o retrato da Realidade, é a visão de um mundo Perfeito e Inalcançável – as modelos dos anúncios dizem-nos “Vem, se comprares este produto podes ser como nós”. Antes de dizermos que a publicidade tem padrões de Beleza irrealistas, devemos parar e pensar se não somos nós que esperamos coisas irrealistas da publicidade – que ela nos compreenda e represente. Como é que ela o pode fazer, se cada um de nós é um consumidor entre milhões? Para Marie-José Mondzain “culpabilidade e responsabilidade são termos que só são atribuíveis a pessoas, nunca a coisas. E as imagens são coisas.”. As imagens não podem fazer-nos nada – somos nós que temos de saber lê-las e abraçar ou rejeitar a sua mensagem. Se sabemos olhar para um filme da Marvel e dizer “Aquilo é só efeitos especiais”, temos de fazer um esforço ao olhar a publicidade e perceber que também ela é só efeitos especiais. Para nosso bem e dos nossos belos corpos, estofados ou não.

Para aprofundar: Gill Saunders, The Nude: A New Perspective / Kenneth Clark, O Nu: um estudo sobre o Ideal em Arte / Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nu Na Antiguidade Clássica / Roland Barthes, Mitologias

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