Fernanda Câncio escreveu hoje no DN um artigo sarcasticamente intitulado “2017, ano da homossexualidade obrigatória“. Nele, Câncio questiona “quem é que podia adivinhar que, em tão pouco tempo, [homossexuais] subjugariam a maioria heterossexual, obrigando-a a converter-se?” Concluindo então que “devíamos ter-lhes dado ouvidos. E levado a sério os visionários que vaticinaram que ‘eles só ficam satisfeitos quando formos todos homossexuais’.”
O texto em si não me causou estranheza, achei-o uma sátira que inverte os papéis da maioria heterossexual e da minoria homossexual. Mais, fá-lo espelhando ódios e fobias que parte de uma tem da outra, desconstruindo argumentos que nalgum ponto já todos e todas lemos nas redes sociais e caixas de comentários.
O texto em si não me causou estranheza só por isto, mas também porque a jornalista é uma forte aliada na luta pelos direitos da população LGBTI portuguesa. Desde há décadas. Por isso faz sentido que o tenha escrito numa altura em que as acusações de censura e de lobbies gay proliferam, renascidas num mundo ocidental pós-Trump.
Causa-me estranheza, sim, algumas das reacções ao texto caricatural da Câncio, especialmente de pessoas LGBTI ou aliadas, levando à letra toda.e.qualquer.sílaba. E isso perturba-me. Porque, goste-se ou não do estilo, goste-se ou não até da figura da jornalista, dificilmente poderia ser um texto literal. Ou se calhar é precisamente esse o problema, é que poderia efectivamente ser um texto literal. E isso é assustador. Mas é também isso que valida o tom irónico usado e a indignação que provocou é a prova dos nove de que o preconceito e a homofobia (e acrescento, já agora, a misoginia) estão ainda entranhados na nossa forma de pensar, por vezes até traindo aquilo que noutro contexto defenderíamos com unhas e dentes. Há pois que saber ler nas entre-linhas – seja do humor, seja da ofensa – para aprendermos a ser boas pessoas. Sim, literalmente.
Fonte: Público (imagem).
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